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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Somos coisa. Ponto?

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publicado em 09/10/2020 às 08h35

Efetivamente, alguém ou algo nos escravizou. Já não há tempo para pensar nem boiar a vida em um ócio prazeroso. Ocuparam nossas mentes e nossas forças com tarefas repetitivas, cansativas e planejadas por algum programa de computador ou por um relho moderno, travestido de coach, que chicoteia a autoestima da humanidade, mas pagando muito pouco.

Em todos os lugares, em todas as profissões, em todo tempo, somos usados como instrumento — de alguém, para alguém ou algo. Vigiamos um ao outro e somos também as próprias ferramentas que nos afugentam das grandes teleologias, incluindo a maior delas: a busca da felicidade.

Não podemos mais ser ponto fora da curva, porque não há mais curvas. Tudo é retilíneo, rigorosamente controlado, e, se alguém quiser destoar da manada, uma força centrípeta extraordinária cuidará de trazer o infeliz de volta ao sistema, que sorri impiedosamente… e de forma sarcástica.

Não há mais conotações. Tudo está denotativamente escrito em algum manual vertido em uma linguagem escorreita, precisa e hermética: ponto a ponto, métrica precisa, rima por rima, despudoradamente.

Não há como fugir: a poesia nos abandonou, porque — diz ela — não é suscetível de ser medida, contada, apurada, precificada nem pode ser expressa em um relatório meticuloso de análise combinatória a ser entregue ao final do dia.

É o fim, cujo fim não sabemos por onde começou nem para onde vai. Somos, para a vida, laços de fita que foram desbotados em alguma fase da produção-consumo; não há mais enfeite, só laço!

Todos nós fomos espoliados da possibilidade das compreensões totalizantes. Só nos foi dado a enxergar um pedacinho do processo, e, mesmo assim, há um conjunto de perfis, cada qual com uma senha restritiva, que há, para tomar ainda mais o nosso tempo, de ter uma letra maiúscula, números, sinais e um controle paralelo para o controle, senão seremos hackeados, sabe-se lá por quem, nem por que, já que tudo pertence à mesma lógica imbecilizante da contemporaneidade.

Pois é. A senha-mãe encontra-se distante de nós, diluída pela engrenagem. Poucos são os donos da criptografia. Só eles têm o ócio benfazejo da criação, mas ninguém sabe onde eles estão, muito embora todos jurem que tudo está conforme a meritocracia, o melhor critério de justiça distributiva, asseguram, com a bocarra aberta, os glutões.

Isso não é difícil de entender. Agora, enfim, temos um preço! Sim. Mercadoria.

Efetivamente, alguém ou algo nos violentou. Até ao professor — sim, pasmem, ao professor! —, já não lhe é dado o tempo de pensar.

Não há mais tempo para pensar, porque há uma aula para ser enquadrada em uma modelagem prévia, quadrada e pronta; se não seguir a lógica, o sistema apita. E bufa.

Não há tempo para pensar, porque há de se escrever no ano, pelo menos, três artigos, que não podem passar de vinte laudas, espaçamento um e meio, fonte Times New Roman (ou Arial), sob pena de não ser aceito pela revista, pela academia, pelos nossos pares. Ai, ai, ai, se o recalcitrante escrever sem citar algum iluminado! A Ciência quedou-se à merda.

Não há tempo para pensar, porque há a plataforma lattes para ser alimentada, com regularidade e ranço, com todas as traquinagens sérias demais, para não constar da escrita das nossas vidas.

Não há tempo para pensar, porque há o projeto de pesquisa que não se permite expressar em uma grande indagação, senão o leito espremido por duas margens virtuais, estreitas e paranoicas pira.

Não há tempo para pensar, há de se corrigirem as quinhentas provas gabaritadas: 1-A, 2-C; 3-D e, ao cabo, feliz e angustiado, caso ainda for gente de carne e osso, perguntar: para quê?

Há de se trabalhar muito: controlar o controle que controla o outrem em uma rede cada vez mais angustiante e infeliz.

Há de ser ler muito: resumos, panfletos e manuais de acesso ao sistema.

Não há tempo para grandes leituras; há o ponto para bater, há reunião de alinhamento para assistir, uma resenha para desenhar, assinar o livro de ouro da turma, preencher o C3PO, estudar a última norma da ABNT, corrigir um trabalho de conclusão de curso escrito à moda Saramago (desculpa, mestre), anotar algo na agenda… o que mesmo?

Há de decorar as fórmulas, as senhas, os números das matrículas, os diversos sistemas informatizados — cada função, funcionamento, modo de acesso; ainda se permite decorar uns cinco nomes de alunos, por semestre, mas um deles escreve assim com cê-cedilha, e você tem um surto psicótico.

A plataforma virtual das aulas… cof, cof, cof. A bicha pensa. Corona vírus?

Há de arrumar tudo dentro da cabeça: cada manual em uma escrivaninha; cada escrivaninha dentro do armário, sem comunicação nem nexo uns com os outros, posto que essa combinação somente existirá às expensas da chave-mestra.

Há de correr pelos corredores da vida: cansado, servil. Onde está a chave-mestra? Onde está a chave-mestra? Achou? Será que assinou o ponto?

Mas, pensar não pode. Não há tempo! Ai, meu Deus, esqueceu a senha! Somos uma coisa. Ponto!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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