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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Se não puder cumprir, não prometa

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publicado em 11/09/2020 às 06h27

(Crônica escrita antes da pandemia)

Francisco Leite Duarte

Dois dias da semana, faça Sol ou chuva, passo por ali, pelo terminal de integração de ônibus. É uma muvuca. Algumas pessoas oferecem água mineral, outras querem vender passagens em carros alternativos, alguém pede esmola, esbarro em um vendedor de picolé, compro o bilhete da passagem, dou uns trocados a uma mulher muito magra que está com uma tatuagem derretida na alma, ouço uma pastora em transe, gritando freneticamente que todos estão condenados às frituras do inferno, tomo o ônibus e sigo debulhando meus pensamentos dentro do meu juízo, cansado da labuta em outra cidade.

Por um detalhe, terça-feira foi diferente. Não foi porque o vendedor de picolé tinha se convertido à crença da pastora e agora era seu ajudante no mister de coletar as ofertas; não foi porque a mulher da tatuagem me pareceu com uma barriga meio saliente, a evidenciar uma gravidez de poucos meses; não foi porque o esgoto da rua estourara, e o mau cheiro evidenciava as vísceras da cidade; não foi porque outros atores tinham se juntado ao quiproquó daquela feira ambulante, como aquele garoto magrinho, de cabeça grande e grito muito fino: “Olha o picoleeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeé!”

Uma bola Canarinho!

Lá por volta dos meus nove anos, depois de muito pedir, por semanas, meses ou mais, papai, ao voltar da feira na cidade, trouxe a almejada bola Canarinho. Era avermelhada, e, em sua esfera translúcida de sonhos, estava estampada a figura de um jogador: punho ao ar, comemoração do gol. Ao vê-la oferecida para mim, caiu-me a coincidência de o rádio velho lá de casa estar entoando a canção alusiva ao tricampeonato da Copa do Mundo de 1970: “…noventa milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração…”

E a alegria apossou-se de mim, e tomei em minhas mãos aquela bola, quase como uma mãe toma em seus braços o filho que acaba de nascer, e, porque beijá-la não me daria o aroma de suas partes mais verdadeiras, cheirei-a com sofreguidão, para sentir seu cheiro autêntico de borracha vulcanizada.

E saí ao terreiro. Era um terreiro grande, cercado com tiras de arame farpado, como era de costume nas casas da zona rural. Foi ali, ao lado de alguns vizinhos, que vi, estupefato, o desespero de minha bola que, após meu primeiro chute, encolhia-se amedrontada e trêmula, posto que, em sua direção, hirsuto e impiedoso, plantado como um carrasco, o arame pontiagudo sorria sarcasticamente.

Caída ao chão, minha bola Canarinho respirava os seus limites. Onde ali houvera a estampa de um braço exposto ao ar, comemorando um gol, um furo de um assassino impiedoso desvirtuara-o em um desenho morto; onde houvera um garoto orgulhoso, havia um farrapinho de gente que soluçava a sua dor; onde um pai orgulhoso rira-se de sua bondade, havia um homem aquebrantado e triste.

Chorei copiosamente por dias. Ao cabo de um luto sincero, papai conseguiu alguém para remendar a bola. Um decalque de uma borracha marrom-esverdeada foi aposto sobre o furo. O conserto, se, por um lado, reviveu minha bola Canarinho, por outro a deformou. Deformada, eu só conseguia nela enxergar uma mancha borrenta, parecendo uma tatuagem desbotada, desfigurando o braço da estampa da figura do jogador.

Mas, em dias, caiu sobre aquela terra árida uma chuva fina, constante. Todas as possibilidades de vida guardadas nas sementes quiseram nascer. O verde tomou conta das pastagens; os galos-de-campina cantavam sem pressa, e até a vaca manhosa entrou no cio.

O inverno havia chegado e trouxe a minha casa uma prima de minha mãe. Com ela, a promessa de uma nova bola, maior do que aquela, bem maior e mais bonita, dizia ela. Renovei a minha vida com a espera.

Foi essa nova bola Canarinho, a que me prometeram, quando eu tinha nove anos, que vi naquela terça-feira. Estava ali, dependurada na parede de uma loja de miudezas, situada à direita de quem sai da rodoviária — no terminal de integração. Se não foi ela, foi a tatuagem desbotada do braço daquela mulher magra que me levou aos meus nove anos, quando, no primeiro chute à minha bola Canarinho, eu me deparei com a primeira perda.

A perda da bola, a promessa não cumprida, aquela tatuagem marrom-esverdeada derretida naquele braço magérrimo me perturbaram o juízo e me fizeram pensar: o que mais dói é a perda de algo que já se teve ou é uma promessa jamais cumprida? Imaginei que as promessas não cumpridas são como os desenhos mortos que se anulam pelo tempo, mas, em se anulando, ainda assim deixam sequelas e frustrações.

Enquanto eu matutava meu juízo, percebi-me paralisado diante da bola com que tanto sonhara. Estava ali, tal qual imaginada nos anos idos da infância. Era maior do que minha primeira. A estampa do jogador estava perfeita, tinha o mesmo cheiro de borracha vulcanizada e me parecia olhar de soslaio, implorando companhia.

Para mim, quase um sessentão, uma bola daquelas seria inútil, mas um garoto de nove anos me exigia respeito.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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