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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Persistência e vontade

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publicado em 26/08/2020 às 07h01
atualizado em 26/08/2020 às 04h21

Maruge (foto) tem 84 anos. Passou 8 anos preso em campos de prisioneiros por lutar pela independência do Quênia. Foi torturado. Teve os tímpanos perfurados a lápis grafite bem apontados. Chicoteado de cabeça para baixo. A mulher e os dois filhos pequenos mortos em sua presença pelos militares da ocupação britânica. Maruge, no entanto, só quer estudar. Maruge não vive de vitimizar-se. Maruge só quer aprender a ler. A burocracia, contudo, quer impedi-lo de estudar, pois não concebe que um adulto, ancião, possa estudar com crianças. Maruge acredita que o poder está na caneta e que é importante saber ler e compreender. A comunidade não entende, é contra; alguns professores são contra. Só a professora Obinchu o acolhe, contrariando a burocracia vigente, por isso é transferida para 500 km de distância de onde trabalhava. Os alunos, crianças que não têm mais de sete anos, não aceitam a nova professora. Maruge é persistente e acredita no poder da educação. Ele vai a Nairóbi e invade uma reunião do Ministério da Educação ou similar e diz porque quer estudar, e diz porque a professora deve voltar: “Precisamos de bons professores. Nós semeamos o que somos com as nossas crianças”. Sem se fazer de vítima, Maruge tira a camisa e mostra as marcas indeléveis de sua tortura, argumento de que o passado nos ensina, não para que o repitamos, mas para que possamos ser melhores do que éramos. É a grande lição de Maruge aos tecnocratas. Este é, com muitas lacunas, o enredo do filme O Aluno (The First Grader), direção de Justin Chadwick, 2010, baseado na história real de Kimane Maruge Ng’ang’a.

Que lições nós brasileiros podemos aprender com Maruge? A primeira delas é que não há idade para aprender, nem há um limite para deixar de aprender, a não ser quando se tem terras pelas orelhas, como diz um dos personagens do filme.

A segunda é que a Esperança é o caminho possível para a transformação, ao lado do Amor. Maruge começa querendo apenas aprender a ler. Os obstáculos que enfrenta em lugar de fazê-lo recuar o impelem para o seu propósito, que se amplia: agora a luta é pelas crianças. Sem Educação para todas as crianças, não há futuro.

A terceira lição é a de que devemos deixar o passado no passado. A presentificação do passado servirá apenas para que ele nos dê lições, não para que nos sirvamos dele como meio de vida. O vitimismo não leva a lugar nenhum. O vitimismo nos estaciona, quando não nos faz regredir. Passado não é meio de vida. A Educação é o meio para se alcançar a plena vida.

A quarta lição é que se não deixarmos de lado as diferenças tribais, no nosso caso as diferenças partidárias, e se não nos unirmos em torno da Esperança de uma Educação que nos traga um futuro melhor, só faremos aumentar a dissensão, meio de vida de muito “revolucionário”. Nada mais revolucionário que buscar a melhor Educação possível. Em meio ao nada, sem eletricidade ou água, a professora Obinchu faz o seu melhor e encanta suas crianças. O contraponto é a escola de adultos, na cidade, para onde Maruge é, momentaneamente, obrigado a ir: adolescentes e adultos irresponsáveis, desrespeitosos, sem qualquer consciência de que a Educação só transforma, quando damos a nossa contraparte, com vontade e persistência. Maruge retorna à aldeia, pois sabe que a Esperança de mudança está nas crianças e no Amor ao que se faz como professor.

A última das lições é que isto que aconteceu no Quênia, poderia ter acontecido no Brasil. Em lugar de Maruge, poderia ter sido José da Silva, invadindo uma reunião do MEC e dando uma lição a engravatados e ensacadinhos tecnocratas. José da Silva ensinaria que as nossas crianças são importantes, que a educação é prioridade, que bons professores não se encontram pelas esquinas e que a boa educação dever ser, sem discussão, para todos, de qualquer idade, sobretudo para aqueles que têm desejo de aprender e de ensinar.

Ensinaria mais: educação é coisa muita séria para ficar nas mãos de engravatados de gabinete. A Educação deve estar nas mãos de quem entende de Educação, que sabe o que são as dificuldades que o professor enfrenta e apesar de todas as adversidades consegue motivar e, muitas vezes, encantar seus alunos, mesmo que seja numa casa de taipa, com cinco alunos por carteira. Quando vontade, persistência, Amor e Esperança co-incidem (assim mesmo), tudo se transforma. Quando se aposta na dissensão, apenas alguns se beneficiam. Mais: se locupletam.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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