João Pessoa, 26 de março de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
novo disco

MaisPB Entrevista: Áurea Martins canta as rezadeiras de um Brasil profundo

Comentários: 0
publicado em 26/03/2022 às 12h29
atualizado em 26/03/2022 às 15h11

Kubitschek Pinheiro – MaisPB

Fotos: Dan Coelho / Sergio Caddah

Com 82 anos, Áurea Martins está lançando um novo disco, “Senhora das Folhas” (Biscoito Fino/ Natura Musical) e, certamente, é um dos mais bonitos produzidos no Brasil nos últimos anos. A cantora homenageia curandeiras e benzedeiras nas 11 faixas, que já estão nas plataformas digitais e sairá físico. Ela conseguiu e sabe que vai bem mais.

“Eu já estava devendo isso aos meus ancestrais”, diz Áurea no início da entrevista ao MaisPB. O lançamento nacional de “Senhora das Folhas” foi bem emblemático: dia 8 de março, Internacional das Mulheres, dia das revoluções e vitórias femininas.

O show de lançamento de seu recém-lançado disco será dia 5 de abril, (uma terça-feira), às 20h, no Teatro Prudential, no Rio, com as participações especiais de Moyseis Marques e André Gabeh, que também cantam no álbum.

O disco é uma homenagem às curandeiras, rezadeiras e benzedeiras, personagens do universo feminino sagrado, guardiãs da sabedoria popular, da fé e da tradição. Em 50 anos de carreira, é a primeira vez que Áurea visita um repertório que joga luz em seu passado, sua raça, sua luta, sua identidade e memórias.

“Senhora das folhas” nasceu do desejo de Renata Grecco, idealizadora e diretora artística do álbum, de lançar luz sobre a teia invisível de saberes populares tradicionais femininos, que atravessa o Brasil profundo. O produtor e diretor musical é Lui Coimbra, a quem ela faz agradecimentos emocionados – a Renata Grecco e Lui Coimbra. Os arranjos são de Lui Coimbra, Fred Ferreira e Alfredo Del Penho. Os figurinos das fotos ( do encarte) tem a assinatura de Ronaldo Fraga. que fez já diversos desfiles com o algodão colorido da Paraíba.

“Senhora das Folhas” foi gravado no segundo semestre do ano passado. Nas sessões de estúdio, Áurea Martins pôde celebrar suas avós, Tia Zélia, que a ensinou a ler e escrever, e Dona Francelina, uma senhora rezadeira do bairro de Campo Grande, no Rio, onde a cantora nasceu e cresceu.

Nessa seara, seu canto fez com que Áurea se deparasse com manifestações místicas. Áurea começou a carreira interpretando sambas-canção nos anos 1950, depois foi uma das poucas mulheres negras a entrar no circuito da bossa nova e do jazz no Brasil.

O primeiro disco, “O Amor em Paz”, veio em 1972. Ficou quase 20 anos sem lançar outro álbum, mas a artista sempre esteve presente cantando na noite carioca.

Os músicos que tocam em “Senhora das Folhas” e o coral formado por Alice Passos, André Gabeh, Elisa Addor, Mariana Baltar, João Cavalcanti, Pedro Miranda, Vidal Assis, João Gabriel Grecco Coimbra e Lui Coimbra, completam a voz da artista e juntos alcançam a Áurea e o Brasil repleto das tradições africanas e indígenas. O álbum também é uma esperança de um encontro da cantora consigo própria. Ela afirma ter absorvido sua verdadeira identidade com o novo disco.

O MaisPB conversou com Áurea Martins, que revelou todos os detalhes desse trabalho primoroso, falou da vida e deu uma rasteira no racismo que não cessa.

MaisPB – Como aconteceu a gestação desse disco?
Áurea Martins – Essa ideia não é minha, foi da Renata Grecco e eu aceitei na hora. Eu encarnei os personagens das canções. Eu já estava devendo isso aos meus ancestrais.

MaisPB – Essas mulheres cantando na introdução da primeira faixa, “Incelença da Chuva” (vinheta) é de domínio público?
Áurea Martins – É sim, são cantorias que as rezadeiras cantavam e cantam, é lindo, não é?

MaisPB – Na verdade, gravar um disco na sua idade já é uma vitória estupenda, não é?
Áurea Martins – É sim, estou bem nesse disco, estou pronta para cantar nos palcos, estou sempre pronta.

MaisPB – Ainda na primeira faixa, depois do canto das rezadeiras, sua voz entra potente em “O Ramo”, que é de autoria da paraibana Socorro Lira. Vamos falar dessa canção e da autora?
Áurea Martins – Eu conheço muito a Socorro Lira, é como se ela fosse minha filha, mas repito, não fui eu que escolhi o roteiro, como já falei, foi a Renata Grecco e o Lui Coimbra. Eu adorei. Não canso de gostar desse disco. E cantar uma canção de Socorro Lira me deixou mais feliz ainda.

MaisPB – A terceira faixa “A Rezadeira”, traz uma citação de “Relampiano” (citação de Lenine e Moska) Fala aí?
Áurea Martins – É sim, eu canto essa canção com Moyseis. Olha, foi uma ideia de Lui Coimbra, que é o produtor do meu disco. Quando eu entro cantando, é a rezadeira falando para o filho da periferia. A letra é de Projota, (rappper paulista). é um cara inteligente, gostei muito de cantar essa canção.

MaisPB – Esse disco é dedicado a várias mulheres rezadeiras, à todas nas representantes que se encantaram recentemente: Vó Joaquina, 94 anos de Serra Talhada (Pernambuco), Dona Rita Jovem aos 95 anos, de Boa Vista (da Paraíba). Dona Angelina, aos 101 anos de Vassouras (Rio de Janeiro)) e Tia Hilda, aos 104 anos, do Pântano da Ilha em Florianópolis (de Santa Catarina). E à Vovó Francelina, a sua avó Dona Áurea, rezadeira que viveu 102 anos, parte deles ainda nos tempos da escravidão. Vamos falar sobre essa homenagem, Áurea?
Áurea Martins – Sim, inicialmente quero dedicar que esse disco é dedicado a todas a todas mulheres e a essas mulheres rezadeiras. A minha avó rezava em mim, quando eu tinha dois anos. Eu era pequena quando ela faleceu. Mamãe me contou muitas histórias dela. A gente tinha caxumba, sarampo, catapora e ela rezava com folhas e a gente ficava boa com a reza.

MaisPB – A canção “Prece do Ó” – segunda faixa (prece recolhida por Cassiano Ricardo e adaptação de Dércio Marques, tem o Santo Antônio de Categeró no caminho, não é
Áurea Martins – Antônio é meu santo protetor, mas ele me encalhou (disse ela rindo) Eu estudei e me adaptei para essas canções. Todas fizeram parte da minha vida. Eu nasci no dia de Santo Antônio. Santo Antônio do Categeró é o santo preto. Eu não entendo bem, mas dizem que tem várias falanges de santos.

MaisPB – A quarta faixa também é de domínio público – “Sem Folhas Não tem Orixás”, que Maria Bethânia gravou e logo em seguida, vem Salve as Folhas de Reonimo e Ildazio Marques. Vamos falar sobre essas canções, Áurea?
Áurea Martins – Vamos. Eu sei que Bethânia gravou e gosto muito do canto dela. Eu botei a voz na melodia. É muita bonita essa canção, sem folhas não tem não tem sonho, sem folha não tem vida, cantarola ela pelo telefone

MaisPB – Áurea como você define a participação dos músicos e do coral que lhe acompanham nesse disco?
Áurea Martins – Eu não tenho nem palavras, Lui Coimbra que ia buscar os músicos, ele gravava a base, tirava meu tom. Só gravamos juntos com o coral. Mas todos os músicos estão de parabéns, sou eternamente grata por esse trabalho tão lindo.

MaisPB – Em seguida você canta “Folha Miuda” junto de “Menino do Samburá” de Roque Ferreira. Já tinha gravado alguma canção dele?
Áurea Martins – Não tinha não, mas gostei muito, admiro muito o trabalho de Roque Ferreira, ele tem muito talento.

MaisPB – Seu último disco seu foi com João Senise. Como você avalia o trabalho desse jovem artista?
Áurea Martins – João é um garoto muito bom, talentoso, ele gosta de cantar comigo, excelente pianista.

MaisPB – Excelente essa canção “Araruna” de Marlui Miranda, que você canta com André Gabeh…
Áurea Martins – O André é extraordinário, ele já esteve num Big Brother Brasil. Muito bacana ele. Achei bom ter ele no meu disco.

MaisPB – Nesse disco você canta “Banhos de Manjericão” de João Nogueira e Paulo César Pinheiro que foi sucesso na voz de Clara Nunes…
Áurea Martins – Eu cantava essa canção de noite nos bares. Gosto muito. Acho muito bonita e gostei muito de gravar.

MaisPB – Em seguida, você canta “Na Paz de Deus” de Arlindo Cruz…
Áurea Martins – Essa canção aí quem gravou primeiro foi Alcione, agora eu gravei. Que beleza, que sensibilidade!

MaisPB – A canção mais tocante é “Me Curar de Mim” da artista pernambucana Flaira Ferro, que é a dançarina, atriz, cantora e compositora…
Áurea Martins – Está todo mundo gostando, é uma canção forte, todo mundo precisa se curar. A Flaira é grande compositora, ela tinha 23 anos quando fez essa música, gravou primeiro que eu. É linda, não é?

MaisPB – Áurea, como você tem visto o alastramento do racismo no Brasil?
Áurea Martins – É um extermínio. Isso é uma barbárie em nosso país e no mundo todo. Às vezes vou ao supermercado e o segurança me segue, eu olho pra cara dele e pergunto: qual é? Só porque eu sou negra?

Escute “Me Curar de Mim”

MaisPB

Leia Também