João Pessoa, 03 de julho de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Por mais que o modernismo de 1922, especialmente em sua primeira fase, por excelência iconoclástica e transgressora, tentasse fazer tábula rasa do passado, desmerecendo o valor da forma fixa e do verso metrificado, em prol do verso livre e branco, assim como das experimentações formais inovadoras, algo da tradição permaneceu e permanece.
Muitos poetas, passando ao largo das novidades e cultivando, sempre, o metro, a rima, a sextilha, a décima e, principalmente, o soneto, continuaram explorando os modelos canonizados. Uns, submissos aos critérios temáticos e estilísticos de velhas escolas; outros, por sua vez, tentando renovar, por dentro, os paradigmas estabelecidos.
Digo isto, porque alguns luminares do modernismo, em certas circunstâncias, não foram indiferentes ao desafio da forma fixa, praticando-a com brilho, inventividade e rigor. Bandeira, Drummond, Vinícius, Quintana, Jorge de Lima e Ledo Ivo, por exemplo, são mestres do soneto.
Trago o assunto à reflexão para me ater a certa tendência, por sinal muito fértil e muito diversificada, do microssistema literário da Paraíba, sobretudo dos anos 20 do século passado aos dias atuais, considerando a configuração do soneto, forma clássica e permanente que parece seduzir a veia inspiradora dos poetas.
Augusto dos Anjos, Silvino Olavo, Américo Falcão, Carlos Dias Fernandes, Pereira da Silva, Osório Paes, Raul Machado, Mauro Luna, decerto representam a linha de frente dos nossos sonetistas, ao mesmo tempo em que se constituem elementos fundantes de uma das mais sólidas vertentes estéticas e literárias da tradição. Cada um, a seu modo de se comportar diante dos apelos expressivos e mesclando aspectos românticos, simbolistas, parnasianos, impressionistas, abriram caminhos para o discurso poético na Paraíba.
Em tempos mais recentes, outras vozes vão aparecer, redimensionando o soneto dentro do quadro histórico, muito embora atentas aos dispositivos métricos e melódicos que o velho parâmetro formal experimenta e exige. Ronaldo Cunha Lima, Raimundo Asfora, Orlando Tejo, Félix Araújo, Bezerra de Carvalho, Osíres de Belli, Anésio Leão, Jansen Filho, Radiel Cavalcanti, Eudésia Vieira, Aldina de Almeida, entre outros e outras, respondem por esse filão. Se não renovam os predicados intrínsecos do soneto, garantem, no entanto, a qualidade de seu ritmo e a força sintética de sua expressão.
Ariano Suassuna, Jomar Morais Souto, Otavio Sitônio Pinto e Vanildo Brito também cultivaram o soneto com mestria e intimidade. Ariano, direcionando sua retórica poética pelas balizas do movimento armorial, com uma dicção de estilo elevado, cifrado, cheio de símbolos e mitos; Jomar, na linhagem do lirismo telúrico e sentimental, eivado de tonalidades sutis e sugestivos efeitos cromáticos; Otavio, com sua tecla erudita, medieva, cervantina, cravada em cadência compassada e crítica; Vanildo, reunindo ao mito a energia telúrica, ao mesmo tempo em que faz de seu lirismo uma intensa meditação filosófica.
Atualmente, tanto na seara dos livros impressos quanto na velocidade do mundo virtual, Deparo-me com alguns sonetistas a demonstrarem sua fidelidade à forma memorável. São eles: Astier Basílio, Gilmar Leite, Astênio César Fernandes, Guilherme Sarinho, Fernando Cunha Lima, Igor Gregório, Melchior Sezefredo Machado, Raniéry Abrantes e Chico Viana.
Astier, com Os funerais da fala, de 1999, ganhou o prêmio “Novos Autores Paraibanos, da UFPB, exercitando um soneto de vigor imagético, calcado no intercâmbio entre a literatura erudita e a literatura oral e popular. Gilmar vem do Vale do Pajeú e sabe manejar a técnica como poucos, sobretudo, nos sonetos em que dialoga com Augusto dos Anjos e naqueles que evocam o sabor e o aroma da terra natal. Astênio, com seu Avirati, de 2022, investe na lírica amorosa e sensual, compactando uma unidade de ritmo e de tema dentro das variações possíveis do soneto inglês e petrarquiano. Igor Gregório, no seu livro de estreia, Alma-de-gato no voo da alvorada, de 2023, a par dos torneios face a outras formas, como a quadra, a décima, a sextilha, ensaia o soneto de inclinação armorial, à Ariano, seu mestre, trilhando, como ele, aquela profusão de símbolos e de mitos particulares, sertanejos e medievais.
A dicção lírica, entre o descritivo e o confessional, estribada no esteio acústico da rima e da métrica, respondem pela tática apurada de Fernando e de Guilherme. Melchior, Raniéry e Chico vêm dando a lume seus sonetos pela plataforma do Facebook. Chico parece dosar sua veia irônica e seu lastro filosófico numa poética bem elaborada do ponto de vista formal e agudamente atenta a motivos existenciais e cotidianos. Raniéry parece cultuar o lirismo mais calcado no poder dos sentimentos, expressando, através de seus versos, aquelas tópicas essenciais e permanentes do cancioneiro tradicional. Melchior vai na mesma linha e procura fazer de seus sonetos um mecanismo musical por onde as emoções se cristalizam, a princípio, no plano mais imediato da palpabilidade humana, para se converter, afinal, e em certos momentos, em emoção estética.
É preciso compreender a inclinação literária desses autores. Fazem uma poesia radicada nos modelos canônicos, comprometidos principalmente com a oralidade, com a declamação, com a performance da palavra dentro das grades formais, avessos, portanto, ao culto da inventividade e do construtivismo que bem demarca certos itinerários da poesia moderna e pós-moderna.
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