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Paraibano da Capital. Tocador de violão e saxofone, tenta dominar o contrabaixo e mantém, por pura teimosia, longa convivência com a percussão, pandeiro, zabumba e triângulo. Escritor, jornalista e magistrado da área criminal do Tribunal de Justiça da Paraíba.

O bicho que deu

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publicado em 06/05/2024 às 14h53

O popular Jogo do Bicho foi inventado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, Rio de Janeiro. A ideia era nobre: aumentar a arrecadação do zoológico, implementando melhorias em benefício dos visitantes e dos próprios animais.

O pagante recebia o ingresso com a imagem de  um dos 25 bichos habitantes do Zoo, que ficava numa jaula encoberta. Ao final do dia, era retirada a cobertura, e se sabia qual era o bicho. Quem tivesse o ingresso marcado com aquele bicho, recebia pequena premiação em dinheiro.

A brincadeira caiu tão  bem ao gosto dos fluminenses, que deu no que deu. Em pouco tempo a Capital da República tornou-se grande centro do jogo, que foi aperfeiçoado, e séries numéricas passaram a representar os animais, que não tiveram culpa alguma no caso. Cada bicho recebeu um número. O veado recebeu o número 24 , e tal número era temido pelos alunos de todas as escolas. Nenhum menino queria ser o 24 da classe. No meu caso, o sofrimento era anual. Com o nome iniciando com a letra H , meu número, respeitada a ordem alfabética dos alunos, sempre estava rondando o trágico numeral. Felizmente, nunca calhou de ficar com ele. Mas, a cada começo de ano letivo, suava frio. Não se falava em politicamente correto nem no tal de bullying . Essas coisas eram resolvidas no tapa.

Surgiram verdadeiros impérios. Quem já não ouviu falar dos “Bicheiros do Rio de Janeiro”? Envolvidos em Escolas de Samba e Times de Futebol, esses, barões do jogo vez por outra estão nos noticiários. Getúlio Vargas legalizou os jogos, mas, o Presidente Dutra acabou com a festa, e proibiu jogos de azar no país. Dizem que por ordem de sua esposa. A patroa de Dutra, muito carola, não tolerava jogos e cassinos. O fato é que o Jogo do Bicho entrou na dança e foi proibido. Jogar virou contravenção penal no país inteiro.

No país inteiro? Não. Na Paraíba é legal. Por alguma razão o jogo é tolerado aqui. Se não me trai a memória, por determinação do Governador João Agripino. Não me indaguem sobre hierarquia das leis, constitucionalidade, ou qualquer outro aspecto legal. Não sei explicar. Mas, que é tolerado aqui, é. Por toda a cidade podem ser vistas bancas, legalmente estabelecidas, recebendo apostas, entregando pules , anunciando resultados. Ouvi até dizer que , acompanhando os tempos modernos, está sendo informatizado o processo.

Conheci muitas pessoas que faziam sua fezinha diariamente, apostando uns trocados, e eventualmente, ganhando pequenos prêmios. Cada uma tinha um sistema, compreensível apenas para ela própria, de adivinhar o bicho do dia. Havia quem apostasse o número da placa do primeiro automóvel que visse na manhã. Ficava atocaiando, de repente, aparecia o carro, pronto. Lá estava o número do bicho. Outros jogadores focavam em números de casas, edifícios, placas de lojas, telefones. Certa feita um deles confidenciou-me que jogava a data do seu casamento. Queixava-se . Não acertava.

O método mais popular, e segundo dizem, infalível, era o de sonhar com o bicho. Mas não era assim, de cara. Ficaria muito fácil, sonhar com um Leão, por exemplo, e dar Leão no dia subsequente. Carecia de interpretação. O sonho, na maioria das vezes , confuso, precisava de alguém especializado para interpretar, decifrar e dar o resultado. Muita gente cultivou essa arte.

Nunca vi , entretanto, pessoa mais competente nesse nobre ofício do que Dora. Fiel servidora doméstica da casa da minha tia Dirce, Dora foi imbatível na arte interpretativa. Não enriqueceu com o Bicho por conta da falta de ambição , própria dos iluminados. Também, é verdade, por não dispor de grandes capitais para investir, e pela injusta (ao meu sentir) recusa de algumas bancas em receber suas apostas. Dôra acertava 3, 4, e até 5 vezes  por semana. Um fenômeno.

Vinha gente de longe, parentes, aderentes, conhecidos e desconhecidos, ansiosamente contar o sonho da noite anterior. Meio impaciente, Dora ouvia a narrativa, e na bucha , dava o prognóstico: Jogue no Cachorro, no Avestruz, no Urso, etc. O consulente era despachado satisfeito e corria para a banca mais próxima, no Mercado Central, para apostar. Muitas vezes acertava, comprovando o talento da intérprete, mas, nunca alguém  voltou para partilhar os  ganhos. Dora jamais cobrou pelos palpites.

Em diversas oportunidades presenciei e fiquei encantado com a consulta e seu resultado. Tentava, mesmo criança, ver alguma lógica naquilo, não conseguia. Certa feita, não aguentei e cobrei resposta. Consulente apareceu contando ter sonhado a noite inteira fazendo bolos. Isso mesmo, preparando, batendo a massa, colocando no forno, etc. Bolos, a noite toda, de diversos sabores. Mal terminou a narrativa, e Dora, como sempre, na lata , deu o prognóstico: Jogue no Tigre.

Assim fez o apostador. Correu para a banca e fez sua fé no Tigre. No fim da tarde, o resultado não deu outro: Tigre na cabeça.

Dessa vez não foi possível resistir, e interpelei: Dora, por favor, me explique isso. O rapaz sonhou fazendo bolo , você mandou ele jogar no Tigre, e deu na cabeça. Que diabos tem uma coisa a ver com outra? E ela, já impaciente, explicando o óbvio: “Oxente menino, e bolo não se faz com farinha de tigre?” .

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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