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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Comarca de palavras

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publicado em 22/11/2023 às 07h00
atualizado em 22/11/2023 às 04h15

 

 

Minha Comarca não é só feita de pedras. Também tem palavras inscritas no seu corpo e no seu chão. Um vocabulário ainda incipiente, mas promissor, para a tessitura de uma história, com seus personagens, motivos, tempo e espaço, entrelaçados no texto sagrado da memória.

O título me chamou a atenção, Lugar sem nome. Fui às orelhas e lá constava os seguintes dados: “Nascida em Aroeiras, na Paraíba, Maria Celia Marinho mudou-se ainda adolescente para o Rio Grande do Sul, onde viveu parte de sua vi8da {…} Lugar sem nome, seu primeiro livro de ficção, trata justamente das rupturas no cotidiano de um vilarejo imaginário, porém carregado de referências à vida no interior do Nordeste da primeira metade do século XX”.

Não hesitei. Comprei o livrinho como se compra um pequenino tesouro e, cheio de orgulho, folheei suas páginas e me vi jogado nas pastagens da infância com meu amigo Dandão, ouvindo o trombone de seu Zuza e perplexo na sala de cinema. Certamente aquela que se dava nas dependências do Mercado Público, com direito a tamborete e saco de farinha. Não sei se é exatamente a paisagem ou se são as horas do tempo que me trazem velhas lembranças. O livro é bem escrito, tocado pelo afeto e acariciado pelo aroma do lirismo e da recordação.

Penso, neste instante, em certos nomes de minha terra. Dados, cada um a seu modo e à sua escolha, ao fascínio das palavras, quem abe, já a compor o fio necessário de uma ilustre credencial.

Pedro de Andrade, cujo sonho, confessou-me, certa feita, era ser “um literata”. Chegou a escrever pequena brochura acerca da fundação e limites do povoado, sua fisiografia, economia, política, gente e costumes. Abílio Dantas, comerciante e irmão do carnavalesco Agamenon, amava a poesia dos românticos e parnasianos que declamava, emocionado, naquele banco da praça, à tardinha, quando, na serra, os lajedos das Lajes e das Cadeirinhas se aquietavam para dormir o suposto sono da eternidade.

Janilto Andrade, Genário Barbosa e Luís Aguiar foram, sem dúvidas, os primeiros intelectuais da Comarca. Os três, hoje, estão consolidados na sua imensa formação cultural. Luís, jornalista, professor da UEPB, aposentado, muito contribuiu para as habilidades das novas gerações de jornalista. Genário, também professor universitário, da UFPB, médico psiquiatra dos mais competentes, sabe dos mistérios que atravessam o rio da alma humana. Janilto, educador dos mais sérios, grande mestre da Universidade Católica de Recife, autor de inúmeros livros no campo da teoria literária e da estética. Poucos dominam os segredos internos da matéria poética como ele, leitor que sabe decifrar o enigma dos vocábulos na oração do poema e exegeta especial do sortilégio das artes. Mereceria, sim, nome de escola ou de rua na nossa querida cidade. A propósito, seria bom se nossa edilidade desse maior atenção a seus conterrâneos notáveis e deles tivesse mais orgulho.

O livro de Maria Celia Marinho me leva a evocar outros personagens de minha Comarca. Personagens que amam os aceiros e os roçados das palavras.

Patrícia Germano, professora, doutora, militante política de esquerda e poeta. Como poeta, alicerçada nos veios da poesia popular a que não faltam o requebro do ritmo e a cosmologia das imagens. Se não publicou alguma coletânea de poemas, já possui material suficiente e de qualidade para tal. Que venham seus versos lavar, com sua melodia, a pele cinzenta dessa velha Comarca. Dudé das Aroeiras, o bardo da cidade, cantador e compositor, autor do livro Pedras de riacho, espécie de miscelânia dos nutrientes da terra, com seus elementos reais e seus minuetos imaginários. Tem CDS gravados, é boêmio e seresteiro. Com uma interpretação de “Tropeiros da Borborema” e da “Saga da Amazônia” que, tenho certeza, Raimundo Asfora, Rosil Cavalcanti e Vital Farias assinariam embaixo. Zé Francisco é outro a quem seduz a força da palavra, seja no formalismo dos tribunais, advogado que é, seja nas canções que canta e elabora no seu violão. Contador de causos, sempre faceiro na sua maneira de ser e existir. Sílvio Santos, de sua geração, toca violão como ninguém, e, no Mercado da Torre, entre cervejas e uísque, deu-me notícia de um volume de sonetos que vem escrevendo a vida inteira. Sílvio sempre foi um “anjo torto” e um “gauche” na vida. Cabe, aqui, também o registro da presença de Evandro Domingos de Figueiredo, sargento do exército brasileiro, psicólogo e historiador que, no livro Etapas da minha vida, conta sua história, evocando lugares, episódios e pessoas que foram seminais para a sua formação.

Da turma mais jovem, sei de Juliana Barbosa, autora de dois romances, Tâmara e Metanóia, títulos, desde já, demarcados pela temática religiosa e evangélica. Ouço falar também em Thiago Barbosa, professor de letras lá pelas bandas da Bahia, e em Vicente César de Andrade, fincando raízes na lavoura das palavras, entre décimas e sextilhas.

Eis o que me dá a minha Comarca. Os rastros de uma embrionária, porém, louvável tradição. A tradição do verbo. Falado, escrito, cantado. Além dos ventos alados, das noites mortas, dos inóspitos arquejos de uma geografia devastada e de um passado que não passa…

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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