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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Fractais e catarse

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publicado em 04/01/2023 às 07h00
atualizado em 03/01/2023 às 15h56

 

O processo catártico pode integrar a escrita literária, mas a escrita literária não pode simplesmente se reduzir ao processo catártico. Fosse assim, a confissão dos sentimentos, expressa por meio das palavras, já seria literatura. Mas não é.

A linguagem literária não pode ser a mera expressão dos sentimentos ou das emoções de quem escreve, ainda que essa escrita procure se pautar pelos critérios de correção sintática e morfológica. A linguagem literária, antes de expressar, produz emoção, precisamente pelo fato de que, neste tipo de linguagem, as palavras se entrelaçam de maneira especial, chamando a atenção do leitor para a realidade substantiva de seus ingredientes acústicos e prosódicos. Isto é, para aquilo que os especialistas chamam de função estética da linguagem.

A digressão me vem a propósito do livro de estreia do professor Nathan Cirino (foto), intitulado Fractais  (Itabuna, BA: 2021), considerados, sobretudo, os exemplos textuais da primeira parte em prosa. O título, em si, sinaliza para os diversos “biografemas” que vão compor o mosaico psíquico e existencial do autor, na medida em que fractais, como ele mesmo nos lembra, “são formas naturais, poderosas, que traduzem nas suas mínimas partes a ideia do todo”.

Sem demarcar, a rigor, os limites canônicos dos gêneros literários e apostando na mescla dos discursos (narrativo, descritivo e reflexivo), Natahan Cirino investe numa espécie de autópsia de si mesmo, trazendo à tona seus sentimentos mais profundos, suas emoções mais revoltas, seus espantos, medos, angústias, perplexidades, inquietações metafísicas e meditações estéticas, entre outras motivações que aquecem o termômetro semântico de sua dicção verbal.

Vê-se, aqui, portanto, a revelação de uma subjetividade fragmentada, que parece refletir as irradiações significativas do título; a narrativa de um eu que se divide e se multiplica na esfera ambígua de uma personalidade complexa. Enfim, de uma mentalidade em crise. Em crise, porque pensa e sente. Principalmente porque sente.

Eis aí o que eu poderia denominar de um rico e comovente documento psicológico, de uma dolorosa radiografia da alma, com todos os seus tormentos, suas paixões tristes e suas paixões alegres, para me valer das categorias de Spinoza.

Neste testemunho, que é o testemunho de uma individualidade e de um certo tempo, o valor instrumental pesa mais que o valor estético propriamente dito, uma vez que a força da catarse, que vem da necessidade quase sufocante de se expressar, contamina e abafa o vigor literário e artístico da palavra.

O próprio escritor, já na Apresentação, deixa bem claro seu compromisso com o timbre confessional de sua escrita, quando, ao aludir a uma experiência de juventude, afirma: “A dor da perda se esvaiu nas linhas, nas letras, nas palavras, e ali aprendi que escrever, pra mim, muito mais que um hobby, seria uma terapia”.

O conjunto de poemas, constituinte da segunda parte, também não consegue, pelo menos no meu modo de entender, mesmo com os artifícios da forma fixa, do metro e da rima e de outros suportes técnicos e retóricos, ultrapassar as fronteiras do lirismo confessional atado, por sua vez, à voz mais urgente das emoções humanas e dos estados sentimentais.

Em alguns textos, a medida da construção melódica, o compasso dos vocábulos e a leveza do pensamento sugerem caminhos poéticos menos lineares, indicando, assim, que o poeta existe, e existe naquilo que me parece mais simples, como nestas estrofes do poema “Canta”: “Canta, mãe, em meu ouvido ∕ Uma canção de ninar ∕ Cantarola qual marola ∕ Brisa leve sobre o mar. {…} Dá-me algo mais palpável, ∕ Que a própria vida em si, ∕ Dá-me, mãe, o que é amável ∕ Dá-me o ato de sorrir”.

Já nas “orações” (Terceira parte), talvez por se apropriar de um paradigma discursivo convencional, recriando-o em outros sentidos e em outras possibilidades, o autor consegue dar o salto qualitativo, para exercitar-se numa prosa poética dotada de solidez e criatividade. Porque, se fala de sua emoção singular, nem por isto deixa de produzir a emoção no leitor. Dito de outra forma: o que é individual é também universal. Agora a emoção humana e pessoal quer se converter em emoção estética, e a catarse tende a se transformar em poesia.

O escritor Leonardo Valente, em nota de orelha, como que confirma minhas impressões, ao afirmar que estas “orações” é como que “um abrir-se sem medo para a conversão de diálogos íntimos e repletos de simbolismos em sensíveis poesias em prosa que complementam o universo particular revelado nessas páginas”.

Nathan Cirino é professor do curso de Arte e Mídia da UFCG – Universidade Federal de Campina Grande. Mestre e doutor em Comunicação pela UFPE – Universidade Federal de Pernambuco. Roteirista e realizador de audiovisual. Dirigiu os curtas “Lamúrias” (2011), “Amador” (2021), “O que resta” (2021) e o longa-metragem “Madame” (2019), documentário em coprodução da Globo News∕Globo Filmes, Canhota filmes e Maria Fita.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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