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Jornalista paraibano, sertanejo que migrou para a capital em 1975. Começou a carreira  no final da década de 70 escrevendo no Jornal O Norte, depois O Momento e Correio da Paraíba. Trabalha da redação de comunicação do TJPB e mantém uma coluna aos domingos no jornal A União. Vive cercado de livros, filmes e discos. É casado com a chef Francis Córdula e pai de Vítor. E-mail: [email protected]

O sol morre na cidade

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publicado em 18/01/2022 às 07h24
atualizado em 18/01/2022 às 04h58

O sol morre na cidade. A intensidade da luz chega até a avenida Epitácio Pessoa.

Na primeira semana do trabalho presencial, na volta para casa, peguei esse pôr do sol.

Pelo retrovisor vejo um guarda-chuva, e reconheço. Preta, imóvel, apoiada ao chão e aos quadris cobertos com o vestido florido no mesmo tom escuro. Tal senhora, me parece, passa o dia na sombra das árvores, não dá a menor importância ao sol.

No sinal em frente ao Colégio Lourdinhas, não vejo mais a noviça que conheci na década de 70. Nem eu, nem ela, tínhamos uma visão periférica desse tempo de agora. Esqueçam. Nada de reflexões estafadas.

O ombro negro, ouro negro aberto, girando em frenesi à moda dos anônimos, mas, ainda que chova ou faça sol, tudo voltou a ser bem veloz na avenida Epitácio Pessoa, hoje, cheia de farmácias em cada esquina. Quase uma em frente a outra.

Lembrei do dia em que acordamos com bonecos grandes pregados em vários postes, numa intervenção do artista Chico Ferreira. Olhares atravessados. Protestos. Não lembro o ano.

Um adolescente em transe, absolutamente pasmado e esquálido, um dois, três, 4, suportando um e outro, o peso do viver. Talvez seja a fome, a velha raiva dos homens. Droga, ainda somos tão antigos.

Há também na cena algo que lembra os retirantes, da família dos Severinos. Uma sacola plástica de um supermercado com restos de quentinhas voa na paisagem. Pague Menos, pague mais.

Na cabeça da avenida, onde o dedo de Epitácio Pessoa aponta para o mar, um velho se encosta, procurando abrigo no restinho de sol, como quem aguarda a salvação.

No cruzamento das avenidas Epitácio e Expedicionários, motoristas alheios as placas de cartolina com mensagens do fim do mundo, enquanto motociclistas encenam loucuras com ralhos ao léu. Qualquer deslize, nem chega o delivery, nem ele volta para casa.

Na bifurcação da avenida Ruy Carneiro, deficientes seminus despejam olhares.  Crianças de rua, que não serão vacinadas, esquecem de existir. Incrível quando uma pessoa esquece de existir, não é?

Dentro dos carros, os progressistas bem arrumados, com os seus discursos iletrados –  uma ilusão à toa. É foda.

Na calçada do RiqueCenter em ruínas, a solidão de uma boliviana, com o filho no peito, quase uma cigana e nenhuma mão na roda. Resquício, essa é a palavra

Passo no sinal verde da Receita Federal, sem ter caído na malha e sem receita ou sem prazo, sem insônia, enfim, já estou noutra viagem.

Quando o sinal abre em frente ao Grupamento de Engenharia, o motorista da frente não avança, é preciso apitar, ele está olhando o celular. Ônibus passam lotados.

De olhos bem abertos, desço a ladeira do Clube Cabo Branco e as luzes já estão acesas.

Há carícias esquecidas por ali.

Não sou aprendiz de James Joyce, sou o sol do sertão, meu sol para me (im)pôr.

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Kapetadas

1 – Chuvas causam calamidades públicas, mas a gota d’água é sempre a imprevidência das autoridades.

2 – Não exijam fé de gente que dorme em escadaria de igreja.

3 – Som na caixa: “A paixão é o sol/Que se espalha no ar/Mesmo ao anoitecer”, Djavan

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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