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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Mundico

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publicado em 19/11/2021 às 10h36

Não me lembro dele antes dos doze anos. Também pudera! Eu nasci no meio do mato, ao pé da Serra do Desterro, onde quase ninguém morava. Foi por essa idade que nos aproximamos. Os pais moravam em uma casinha simples, no caminho entre a minha e o povoado de Areias, onde eu ia jogar nas várzeas que admitissem como deusa uma bola de futebol, mesmo que de meia e de pés descalços.

Mundico era mais novo do que eu, mas bem maior. Mundico era grandão, dessas naturezas graúdas que já nascem prontas. Nem os maus-tratos das necessidades diárias deixavam franzino o meu amigo. Se jogasse futebol, seria um beque perfeito, zagueiro que meteria medo no adversário. O chute, um petardo; a alma, mansidão; uma força bruta fora da curva, o número Pi em sua potência máxima. O primeiro chute de Mundico perdeu a minha bola, que ainda hoje voa pelas dimensões do espaço como ele, agora.

Para Mundico, bola era alguma coisa quadrada. Assim se apresentou na primeira vez, quando o conduzi a uma partida no terreiro da casa de José Francisco. Viciou-se, quase mais do que o meu vício; aprendeu e logo enfrentávamos qualquer obstáculo por uma bola nas várzeas de Areias, Cafundó, Fazenda Nova, Casas Velhas, Saco dos Dudus, Quixaba etc. Não medíamos distância, quase sempre a pé e, se não desse, íamos montados no lombo de algum jumento. Na volta da peleja futebolística, perdida ou ganha, um prato de angu com um ovo estrelado e muitas risadas escancaradas nos aguardavam na minha ou na casa dele.

O contraste entre os meus dribles e os petardos de Mundico se dava na semana. Eu tinha um sonho: vencer, a pé, duas léguas até cidade, para estudar. A Mundico nem sequer foi dada a possibilidade de tentar. Tudo lhe castigou, para deixá-lo ali inerte, largado ao nada, ao alcoolismo, à desesperança e, ao fim, desenganado, às dores lancinantes de um câncer de garganta. Semana passada, Mundico enlaçou seu desespero em uma corda gasta como ele. Para fugir das dores, o meu amigo correu à morte! Eu chorei.

@professorchicoleite

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