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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Quando a vacinação era no tiro

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publicado em 09/04/2021 às 07h04

Não me lembro se era contra o sarampo ou a varíola. O certo é que meu braço esquerdo ainda porta, hoje, a marca da vacina ministrada por meio de uma pistola que um moço moreno, de camisa rosa, sacou de dentro de um invólucro feito de plástico ou de algo parecido.
A forma como o rapaz portava a pistola indicava que cumpria o seu ofício com muito zelo e gosto. Falava pouco, demonstrando uma timidez contida, mas, quando puxava o gatilho e encostava aquele negócio frio no braço da gente, abria um sorriso fininho, como se estivesse sentindo algo maior do que o simples prazer.
Não doeu, mas ardeu como uma ferroada de abelha-italiana. Por dias, uma pequena pústula cresceu no meu braço e me trouxe uma febre curta, até o dia em que estourou, e um pus remelento escorreu, provocando nojo.
Ainda assim, eu estava orgulhoso. Não pela vacina em si, já que não sabia seu significado e importância. Era pela novidade, afinal, na zona rural de uma cidadezinha minúscula, situada no alto sertão da Paraíba, nos anos sessenta, qualquer pessoa que chegasse a nossa casa calçando sapatos e vestisse alguma roupa sem algum remendo, nódoa ou amasso, poderia muito bem reivindicar o status de visita importante.
E era. Papai fez questão de receber o moço com todas as regalias. Instalou o agente de saúde lá em casa pelo dia inteiro e a noite também. Mãe matou uma galinha, estrelou ovos, tirou da mala velha o arroz que escondera como reserva para ocasiões especiais, e papai mandara buscar, na bodega de Seu Né Leite, uma gasosa (guaraná), um pacote de macarrão e duas latas de sardinha. Festança!
O jantar fora servido na mesa que ficava na sala do meio. Somente o moço de camisa rosa sentara-se à mesa. Nem papai, o chefe da casa, acompanhava-o na comilança. Papéis bem marcados, e o de papai não era esse. Todas as pessoas da casa estavam ali, ao redor da mesa, para servir a visita, não para dividir com ela quaisquer iguarias.
Eu, que ainda era aprendiz dessas coisas da educação, sobretudo a de fazer a visita sentir-se como se estivesse em sua própria casa — lição corriqueira saída da boca de papai —, ficava também por ali, à disposição de algum adulto e de suas ordens. No fundo, confesso, eu ficava na torcida, para que a visita comesse pouco, pouco mesmo.
Ah! O moço de camisa rosa leu os meus pensamentos com galhardia. Sobraram duas tigelas de arroz, uma sardinha inteirinha, três ovos estrelados, muito macarrão, uns quatro dedos do guaraná, a panela quase inteira da galinha, tudo muito bem dividido por mãe na cozinha depois de retirar a mesa.
Papai carregara o moço de camisa rosa para a sala e fizera-o se deitar em uma rede grandona, branca da cor de farinha de mandioca, rede de visitas, porque quem chegasse a nossa casa já entrava com uma coroa na cabeça e um cetro na mão.
Mãe, na cozinha, divida a ceia farta com os filhos, alegria sem fim de quem, no dia a dia, só comia angu, mungunzá, feijão com toucinho assado na brasa e um pedaço de rapadura preta.
A sala já se enchia de gente, para ver o moço da vacinação. Papai contava todos os causos para a sua visita, que retribuía a gentileza falando dos benefícios da vacina e do perigo da bexiga (varíola).
A noite caíra fazendo uma cara de preguiça, e nós, a recua de meninos, saíamos para o terreiro. Noitinha de lua clara, como se estivesse sido limpa com rapa de juá. O vento descia da serra do desterro com uma preguiça desmedida e açoitava nossas fantasias que, naquela noite, eram muito curtas e imediatas: a vacina.
Alguns meninos juravam de pé junto que, na pistola de vacinação, havia uma agulha do tamanho de um espeto, e, caso o moço de camisa rosa não acertasse o prumo, o agulhão poderia varar o nosso braço de um lado ao outro. Um moleque cabeçudo, à madrugada, com medo, fugiu de casa e dormiu no mato, só voltando no outro dia, quando foi castigado pela mãe dele. Chicote de mofumbo verde nas pernas finas do moleque, para o mentecapto aprender a lição e nunca mais repetir que a vacina faria dele um jacaré.
Pela manhã, fomos todos vacinados. Mãe retornou ao seu cotidiano. O moço de camisa rosa foi embora, deixando em mim essa marca no braço esquerdo. Deixou-me também o desejo que voltasse. Saudade da festança!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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