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entrevista de sábado

Adriana Calcanhotto lança três projetos musicais em plena pandemia

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publicado em 02/01/2020 às 10h24
atualizado em 02/01/2020 às 14h58

Kubitschek Pinheiro – MaisPB
Fotos – Murilo Alvesso

Adriana Calcanhotto é uma artista brasileira que vem das marés, das correntes marítimas, que dá “Margem” as suas belas canções, que oferecem novas possibilidades. O registro de “Margem, finda a viagem”, com selo da Biscoito Fino, saiu em DVD e CD e foi lançado em plena pandemia. O show gravado em dezembro de 2019, na Grande Sala da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro e teve a participação especial do cantor Rubel. No palco, os artistas cantaram “Mentiras” e “Você me Pergunta”.

O repertório traz canções de Margem, lançado em junho de 2019, e resgata músicas de Maritmo (1998) e Maré (2008), os outros dois discos da trilogia marinha, como “Mais Feliz” e “Vambora”, além de sucessos da carreira de Adriana, como “Maresia” e “Devolva-me”, que ganhou clipe da apresentação ao vivo.

A banda que a acompanha no DVD, assim como foi em toda a turnê Margem, é formada por Rafael Rocha, Bruno Di Lullo e Bem Gil. A direção de vídeo é de Murilo Alvesso, produção executiva, Jorge Yuri, assistente de produção, Sofia Galassi e Victor Dias de Freitas. Edição Lola Zola e Murilo Alvesso. Direção de Produção de Andrea Franco. Realização – Xirê Eventos, Minha Música, Assum Filmes e Biscoito Fino.

Nas palavras de Adriana Calcanhotto, “Margem, finda a viagem é um espetáculo que as canções dos três álbuns marítimos conversam entre si, numa síntese do repertório que está muito bem captada, assim como a alegria e o entrosamento da equipe embarcada nessa aventura da qual nos despedimos agora”.

O mundo parou em março passado, quando foi decretada pandemia, mas Adriana não parou. Nesse período, ela gravou e lançou seu 13° álbum intitulado “Só”, “Só Canções da Quarentena” feito inteiramente durante este período de isolamento social, (de 27 de março à 8 de maio 9 de 2020), e traz músicas inéditas produzidas por Arthur Nogueira, com arte de Mike Knecht. O lançamento foi em maio do ano passado, em todas as plataformas musicais. “Só” é um disco lindo.

A terceira novidade, que chega para abrilhantar o encerramento das comemorações dos 30 anos da carreira de Adriana Calcanhotto, o lançamento do álbum “Remix Século XXI”, com seis canções significativas de sua obra, pela primeira vez em versões remixadas. O álbum sai pela Apple Music, com a curadoria do DJ Zé Pedro, que escolheu os produtores. O disco “Remix Século XXI” traz versões que traçam um perfil eletrônico e surpreendente de hits como por exemplo “Vambora”, “Mentiras” e “Esquadros”.

O primeiro produtor escolhido por Zé Pedro foi George Mendez, do projeto Vizcaya, que já tinha dois remixes prontos devido à sua admiração pelo trabalho de Adriana. A partir daí, ele criou mais dois remixes somados à chegada do DJ e produtor gaúcho Eduardo Herrera e Fernando Britto, um paulista integrante do projeto Tin God.

Em entrevista ao MaisPB pelo telefone, Adriana Calcanhotto fala desses projetos, da sala de aula onde ministra cursos na Universidade de Coimbra, mostra a maior alegria ao falar dos trinta anos de carreira em plena pandemia e traz a novidade da canção “2 de Junho”, que fez para Rafael, o menino preto que caiu do prédio em Recife, enquanto a mãe passeava com o cachorro da madame, Sari Corte Real. E mais surpresas sobre essa canção – leia a entrevista e descubra.

MaisPB – Vamos começar pelo disco “Só”, fruto dessa pandemia?
Adriana Calcanhotto – Ele veio com a pandemia, sim. Eu acordava com muita energia e precisava botar em alguma coisa. Todos nós estávamos precisando de ajuda. Como eu não fui dar aulas em Coimbra, como faço todos os anos, fiquei com as coisas que eu tinha pensando para propor aos alunos, o conteúdo das aulas, veio o extravasar: o trabalho que já estava feito e também a necessidade dessa intenção de que temos que resistir, temos que vencer. Me disciplinei e comecei a fazer o disco “Só”.

MaisPB – Não deve ter sido fácil…
Adriana Calcanhotto – Não é fácil todos os dias acordar no mesmo horário e fazer canção, mas foi um momento muito especial e que tinha essa urgência de crônica. O “Só” é uma coleção de crônicas.

MaisPB – Eu achei algumas canções do CD “Só” tristes. Estou certo?
Adriana Calcanhotto – São crônicas daquele momento, que foi tudo muito triste mesmo. Muito assustador, que interferiu em nossas vidas, que eu até encaro também como uma oportunidade, principalmente. Mas perdemos muita gente no mundo, é uma coisa muito triste.

MaisPB – E isso refletiu nas canções, né?
Adriana Calcanhotto – Sim, esse tom permeia o disco, essa tristeza que você fala, de modo cíclico que tem as pestes, as pandemias, e a gente sempre acha que está preparado, por ser humano, é superior a qualquer coisa. Mas é chegada a hora de colocar tudo nos eixos, no lugar. Não somos invencíveis. É um vírus que a gente nem enxerga. Diante disso, a briga das nações, o racismo, o preconceito e as coisas começam a ficam impossíveis mediante essa realidade.

MaisPB – Uma realidade bem cruel…
Adriana Calcanhotto – Eu vi Gilberto Gil falando numa entrevista sobre essa coisa dos jornalistas perguntarem muito pra gente, o que estamos fazendo (na pandemia), e algumas pessoas estão conseguindo criar e outras não estão. Muitas pessoas estão querendo saber de outras coisas, não querem saber das notícias. Eu estou pensando mais como Gil. Isso se apresentou e a gente tem que viver, encarar e tem como aprender.

MaisPB – A canção “Ninguém na Rua”, já é um vazio?
Adriana Calcanhotto – Sim.

MaisPB – O disco “Só” foi gravado em vários lugares…
Adriana Calcanhotto – O Arthur Nogueira que é o produtor, fez essa ponte. Eu acho que o fato de cada um está na sua casa, não era possível juntar um grupo. O projeto foi acontecendo, a cada dia. A essa ideia de gravar com pessoas que estão na Bahia, Belém do Pará, São Paulo, que já existe, não é nenhuma novidade, mas que a quarentena impôs e teve que ser assim.

MaisPB – É um disco com excelentes músicos?
Adriana Calcanhotto – Uma coisa importante, não só pra mim que estava criando as canções, mas os músicos, também. Ninguém estava mais trabalhando, não tinha convite para show e não tinha essa coisa de exercer o próprio oficio. O Arthur mandava as faixas para os meninos (músicos), e eles tocavam com muita garra, muita vontade. Cada um no seu canto sozinho e tocando junto, parece que está todo mundo tocando juntinho no som.

MaisPB – Vamos falar da trilogia Margem, Maré e Marítimo que virou DVD e CD e saiu agora nessa pandemia?
Adriana Calcanhotto – É um registro que foi feiro no Rio de Janeiro, no final de 2019. Em janeiro (de 2020), encerramos turnê do Margem no Brasil e faltavam os shows em Portugal. Veio a pandemia e eu não pude ir em fevereiro (para ministrar as aulas), nem em maio, que daria continuidade a turnê do Margem. Mas saiu em dezembro de (2020) e eu gostei muito e espero que vocês gostem.

MaisPB – Mas em novembro você esteve em Portugal e fez shows?
Adriana Calcanhotto – O interessante, é o seguinte: teve a pandemia, teve o disco da pandemia e agora sai o DVD e CD, exatamente no momento em que acabamos a turnê, com shows em Portugal. Nos apresentamos lá em novembro passado e voltamos.

MaisPB – “Futuros Amantes” (de Chico Buarque do álbum Paratodos, de 1993), tem tudo a ver com essa turnê Margem?
Adriana Calcanhotto – Sempre teve, por causa dos Ilhéus (Antônio Cícero/ Zé Miguel Wisnik), também. Porque essas canções, “Futuros Amantes” eu gravei no disco, mas separamos como um bônus “track” para o disco do Japão, que eles querem uma faixa que seja só deles. O bacana é que no show elas estão uma depois da outra. É uma coisa do futuro e o Margem está falando desse mar agora, totalmente poluído, entupido de plástico. Eu vi outro dia no Estadão, uma matéria falando que as pessoas estão comendo o plástico jogado no mar, que é um verso que eu digo na minha canção “Ogunté” (a 14 faixa do Ao Vivo) – “O plástico do mundo no peixe da ceia”. Então, Os Ilhéus e Futuros Amantes estão falando de um possível futuro e depende de nós que aja um futuro, eu acho. E são duas matérias poéticas diferentes, mas tratam da mesma coisa – de Antônio Cicero e Chico Buarque.

MaisPB – O terceiro presente para os fãs, é o disco Remix Século XXI. Vamos falar sobre essa maravilha?
Adriana Calcanhotto – Eu fiz as canções e não participei da produção. Eu falei com o Zé Pedro (DJ) e disse – pode ir em frente. Quero ouvir pronto. Eu gostei muito.

MaisPB – E o disco ficou ótimo, remixadas suas canções (pelo DJ e produtor gaúcho Eduardo Herrera e Fernando Britto, um paulista integrante do projeto Tin God)
Adriana Calcanhotto – O legal disso é que as canções que sobreviveram todo esse tempo, só uma que é mais nova, “Ninguém na Rua”. Como eu não tomei conhecimento de nada, eu gosto de ouvir, saber das canções escolhidas, como tratou. Foram lançadas na linguagem deles. Engraçado, numa entrevista com Zé Pedro, um dia desses, ele disse que algumas canções minhas, gostaria de ter feito, mas nunca achou a batida certa. “Vambora” é uma dessas canções, que agora ele conseguiu e estava feliz por isso. Então, é muita alegria pra todos nós.

MaisPB – Três produções musicais nesse ano que se foi…
Adriana Calcanhotto – Eu estou muito contente com tudo isso, porque o projeto do ano era – vou para Coimbra e eu não ia escapar das homenagens dos trinta anos de carreira. A Maria Bethânia é o contrário de mim, ela celebra todos os anos. Eu acho lindo, mas eu não sou assim. Eu estava pensando, vou passar o ano inteiro falando do início da carreira, quando a pessoa tem dois anos de carreira, a resposta é rápida.

MaisPB – E os trinta anos de carreira?
Adriana Calcanhotto – Olha, toda essa celebração não aconteceu, fiz três produções, estou feliz. Não teve esse “bode” de ficar pensando nos trinta anos de carreira. Vou ter que responder tudo de novo, olhar para trás. Na verdade, eu não fiquei olhando nem para frente, foi para o presente, no primeiro momento que foi o disco “Só” e O Margem, o que ele registra o de melhor: isso está no som, mas as imagens no DVD, eu entendi melhor o nível de sintonia de banda, um quarteto, três meninos e eu. Todos unidos, coisas novas.

MaisPB – É tão bonito você em cena, sua performance?
Adriana Calcanhotto – Isso sempre foi muito importante para mim, mas tem alguns momentos em que trabalhei mais. A primeira imagem que vem sou eu de voz e violão, onde tudo começa, onde eu componho, tiro a canção. Eu faço show solo, mas desde Porto Alegre, que eu já fazia shows performáticos, a coisa temática, a sonoridade e figurinos, sempre muito influenciada pela Tropicália de uma maneira geral, pela Rita Lee, Os Mutantes e pelo Ney Matogrosso. Quando eu estou com banda, trabalho isso muito mais.

Caso Miguel, a canção de Calcanhotto

Vamos voltar no tempo. Em junho passado, em plena pandemia, o país viu, ouviu e as redes sociais detonaram, o caso Miguel Otávio, de cinco anos, que caiu do nono andar do edifício Pier Maurício de Nassau, no Bairro Santo Antônio, Região Central do Recife. A criança foi deixada sob a responsabilidade da, até então, patroa de Mirtes, a primeira-dama de Tamandaré, Sari Corte Real, para que a doméstica passeasse com a cadela da família. Lembram?
A cantora Adriana Calcanhotto fez a canção “2 de Junho”. Confiram logo a letra e saibam no final dessa entrevista, como Adriana conseguiu compor e gravar. O grito não ficou só com Adriana. A cantora Maria Bethânia também gravou e sairá no seu disco novo deste ano.

2 de Junho – a letra

“No país negro e racista/No coração da América Latina/Na cidade do Recife/Terça feira 2 de junho de dois mil e vinte/Vinte e nove graus Celsius/ Céu claro/ Sai pra trabalhar a empregada/ Mesmo no meio da pandemia/ E por isso ela leva pela mão/ Miguel, cinco anos/ Nome de anjo/ Miguel Otávio/ Primeiro e único/Trinta e cinco metros de voo/ Do nono andar/Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar/ O destino de Ícaro/O sangue de preto/As asas de ar/O destino de Ícaro/O sangue de preto/As asas de ar
No país negro e racista/No coração da América Latina”

A canção foi mostrada ao público durante a exibição online da turnê que começou e terminou no mesmo dia chamada “Um show Só”, transmitida do palco do Teatro Riachuelo Rio no dia 5 de setembro. A canção terá renda dos direitos autorais revertida ao Instituto Menino Miguel.

MaisPB – A canção 2 de Junho, que você fez em homenagem ao garoto Miguel é dolente e preocupante…
Adriana Calcanhotto – O que aconteceu, é que logo depois que fiz o disco “Só”, a última faixa do CD é “Corre o mundo”, então, veio aquele caso do menino do Recife e o disco já estava lançado. Mas eu encarro como uma canção da mesma safra. A canção só existe porque estamos em pandemia, igual as outras canções do “Só”

MaisPB – Como veio a ideia de fazer 2 de Junho?
Adriana Calcanhotto – Eu ficava rondando a casa, andando de um lado para outro sem consegui engolir aquela história. Eu não conseguia fazer a canção…

MaisPB – A canção é um grito solto e tem a coisa do racismo?
Adriana Calcanhotto – Essa história é uma apoteose de Brasil no pior sentido. Tudo isso é racismo estrutural. As coisas que tem por trás da história são terríveis, são muito ruins. Eu fiz a canção e não tinha nenhuma intenção de ser uma bela canção, porque o tema era esse. A Mirtes, (mãe do menino), ela se sentiu acolhida com a canção e isso mudou um pouco para mim, porque a música estava me enlouquecendo. Mirtes disse que minha canção deu um consolo pra ela, por mais difícil que seja, aquilo confortou o coração da mãe.

MaisPB – Como é a Mirtes?
Adriana Calcanhotto – A Mirtes é uma mulher simples, muito especial.

MaisPB – Que bom que Maria Bethânia gravou “2 de Junho”?
Adriana Calcanhotto – Sim, gravou e vai sair no próximo disco dela. Eu amo Maria Bethânia todo mudo sabe, uma grande interprete. Ela já gravou várias canções minhas, todas de amor. “2 de Junho” não fala de amor, não é uma canção bela, nada disso. Maria Bethânia grava essa canção e eu ganhei o ano, um ano tão ruim – 2020 – tão difícil.

MaisPB – As coisa vão melhorar, teremos esperança no Brasil?
Adriana Calcanhotto – Considerando assim a primeira tendência, vão melhorar. É tudo cíclico, essa onda enlouquecida que se instaurou no Brasil, isso é a resposta, a coisa política vai mudar. Eu tenho esperança.

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