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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

A nudez da terra

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publicado em 20/11/2020 às 08h18

As minhas irmãs sempre foram muito melhores do que eu. Eu não passava dos cinco aos oito quilos de algodão catado. As meninas quase dobravam a colheita. Sim, eu ficava com uma vergonha… mas fazer o quê? Na arte de colher algodão, dentre outras tantas artes, eu era mesmo um estorvo.

A colheita do algodão tinha um ritual. Na véspera, já se fechava o acordo: quem iria para a colheita, onde seria, quanto o padrinho Antônio iria pagar o quilograma catado e, por ora, era tudo certa algazarra cheia de esperança e vida.

A esperança se chamava, para Bia, um vestido vermelho, quando ela o desfilaria na festa da padroeira de Areias; para Flaviana, alguns metros de tecidos, para ela preparar uma roupa mais modesta, mas, ainda assim, bela e útil; para mim, um kichute e – quem sabe? –, se desse, um relógio novinho em folha!

No outro dia, já bem cedo, cada um em suas casas, todos se vestiam de modo a se protegerem, o máximo possível, dos espinhos, do calor, dos bichos que, no cio, corriam soltos por dentro das carreiras do algodão.

Quase sempre não havia nada para comer pela manhã. Em algumas casas, talvez, café puro; em outras, um pedaço de cuscuz, um gole de café, ou nada, mesmo. Simples assim: levantavam-se, escovavam-se os dentes com rapa de juá, um gole d’água e, em doce alegria, todos iam ao grande encontro com os outros cúmplices da vida mequetrefe: o terreiro da casa de padrinho Antônio. Lá, todos se uniam para tomar um só rumo: a capoeira de algodão que ficava na serrinha.

As primeiras carreiras de algodão percorridas ainda eram poemas excitantes. A esperança ainda estava muito acesa em nossos desejos; o sol ainda pendia leve sobre nossas cabeças; alguém puxava uma canção a que todos acorriam em um coral não ensaiado, mas burilado pela comunhão da vida; o algodão colhido ainda era leve; os carrapichos ainda eram espinhos recém-acordados à vida, e eu, por azar e sorte, só pegava carreiras em que a maioria das maçãs do algodão ainda estava verde!

Mas, o sol, com o passar do tempo, caía mais intenso e expunha, sem pudor, a nudez da terra; as carreiras do algodão plantado se alongavam como se não tivessem fim; o bornal do algodão ficava mais pesado; os cantos das unhas já se esfolavam pelo contato constante dos dedos com os capulhos do algodão; o carrapicho já se entranhava em nossas pernas como carne e unha; os besouros mais fedorentos agitavam suas asas somente para mim; o suor já descia, gota a gota, cristalino e sal; eu remava no mar do purgatório (foto)– fel e fogo; e o almoço – angu e ovos estrelados – só sairia às onze e trinta.

Eu queria morrer, mas ainda eram dez horas da manhã!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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