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Jornalista, cronista, diácono na Arquidiocese da Paraíba, integra o IHGP, a Academia Cabedelense de Letras e Artes Litorânea, API e União Brasileira de Escritores-Paraíba, tem vários publicados.

Fartura espiritual    

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publicado em 05/04/2023 às 07h00
atualizado em 04/04/2023 às 13h52

Não faz muito tempo, no período em que nós católicos chamamos de Semana Santa, o silêncio tomava conta de nosso viver nos arredores de Serraria, somente quebrado pelas antecipadas badaladas do sino da igreja ao chamar para o ato de penitência ou pela matraca durante a celebração do martírio na noite da agonia. Aliás, calmaria que começava em casa com a preparação da festa religiosa rodeada de cuidados. Os retratos dos santos nas paredes eram cobertos de pano roxo durante quarenta dias.

A preparação da penitência começava na Quarta-feira de cinzas, quando fazíamos abstinência de carne, os adultos jejuavam, não maltratávamos os bichos e recebíamos cinza na fronte. O padre dizia que deveríamos nos converter à Palavra de Deus e crer nos ensinamentos da Igreja.

Tudo sinalizava para a recordação do sacrifício daquele Homem pendurado na cruz, que eu olhava sem entender, do qual fazemos memória a cada celebração da missa. Durante a semana abandonávamos os banhos no açude, não se golpeavam os animais, nem davam cocorotes em nós, meninos.

Tempo de fartura no roçado em Tapuio, e da renovação da fé, recriada a partir do olhar ao madeiro umedecido de sangue do Cordeiro imolado. Período que reduzíamos as traquinagens comum de quem foi criado na liberdade do vento e nutridos com o cheiro do mato verde, banhados nos açudes de água doce. 

Na semana de penitência, enchíamos as barricas com farinha e feijão para o jejum das mães de meninos que passavam em magotes pela estrada, durante três dias seguidos, mas do que em tempos normais. 

No bisaco a tiracolo, esses guardavam as esmolas para o jejum da mãe. Era o período em que mais se comia. Eram lascas de bacalhau, beijus e pés de moleque que saciavam o apetite. 

Assim como os meninos com seu bornal, também éramos portadores da “esmola” que mamãe mandava entregar às comadres do sítio, para o desjejum delas, com o mesmo sentimento de dois mil anos atrás.

Uma coisa me intrigava: justamente a esmola para jejuar. Padre Aluísio Catão reforçava os ensinamentos de Tina Mendes nas aulas do catecismo, relembrava este período do ano quando as pessoas deveriam fazer penitência e comer menos. Mas, no sítio, era quando as pessoas mais comiam, principalmente as mães e os meninos, mesmo que a recomendação do padre fosse para que as pessoas tivessem regra na alimentação. 

Olhando a imagem representando Jesus pregado na cruz, por vezes, crescia a vontade de transportar-me até ao lugar onde tudo aconteceu há dois mil anos, como faziam os heróis das estórias inventadas por Seu Gabriel, para impedir todo aquele sofrimento e martírio. 

Bem mais tarde descobri naquela crucificação a lição suprema de amor, primeiro passo para a vida nova, com a finalidade de libertar-nos do que gera egoísmo e da escravidão da alma.

Agora entendo o significado do punhado de farinha, tapiocas e bolos distribuídos para as mães moradoras dos arredores de nosso sítio jejuarem; e das trocas de alimentos entre as famílias da vizinhança, num aceno fraterno. Repetíamos os gestos dos primeiros cristãos que tinham tudo em comum, e partilhavam entre todos os que possuíam. 

Eram sinais simples que continham sentido do projeto libertador construído à base da entrega total na cruz. Cruz de onde nasce o homem novo, o protótipo de quem ama sem limites.

Nos tempos atuais o pobre está em jejum constante, uma fome vez mais planetarizada, com o bornal vazio e a trempe sem panela.

 Só resta a fartura espiritual nascida das gotas de sangue caídas do madeiro no alto do Gólgota.  

 

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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