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Entrevista: HQ “O Tesouro” do roteirista Maurício Dias é lançado nacionalmente

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publicado em 11/03/2023 às 11h39
atualizado em 11/03/2023 às 14h55

Kubitschek Pinheiro MaisPB

A cena nacional de quadrinhos vive uma fase efervescente, com  uma variedade de escritores e artistas dedicados a produções de qualidade nas publicações.  “O Tesouro”, HQ que chegou ao público nacional, criado pelo roteirista Maurício Oliveira Dias (foto) (de “O Grande Xaram”) e pelos ilustradores Alex Genaro (de “Valkíria — A Fonte da Juventude”) e Pedro Okuyama (de “Arsène Lupin, O Ladrão de Casaca”), é o mais avançado da nova safra de lançamentos no país.

A história se passa em um subúrbio do Rio de Janeiro nos anos 1990. Logo nas primeiras páginas, dois irmãos adolescentes encontram um saco de dinheiro em um carro que dois ladrões em fuga acabaram de bater contra uma árvore. O que vemos nas páginas seguintes é o que acontece quando os dois resolvem se apossar do dinheiro — com grande foco no irmão mais velho, Carlos. É uma história bem brasileira.

Os acontecimentos de “O Tesouro” ocorrem em 1992, um ano difícil para os brasileiros, com início de processo de impeachment presidencial (e as consequentes renúncia e cassação de Fernando Collor), inflação galopante (beirando os 1.000% naquele ano) e o assassinato chocante da atriz Daniella Perez, entre outros acontecimentos.

A história foi tirada de um roteiro para cinema que eu escrevi na época em que fazia faculdade, em meados dos anos 1990. Na época, se passava ‘no presente’”, esclarece o escritor Maurício Oliveira Dias. Decorridos tantos anos desde o início do trabalho — e sua adaptação para os quadrinhos —, foi necessário manter o enredo naquela época, já que a existência de celulares hoje em dia inviabilizaria parte da trama.

Ainda assim, não dá para dizer que “O Tesouro” parece deslocado no tempo, a cidade do Rio de Janeiro segue, em grande parte, dominada pelo crime — talvez até mais do que nos anos 90, quando as milícias ainda não haviam avançado com tanta força na capital carioca. Além disso, a religião também tem um papel importante na HQ. Leiam “O Tesouro” e descubram muito mais.

Essa é a segunda vez que o escritor e roteirista conversa com o MaisPB – confira o conteúdo de um artista apaixonado pelos quadrinhos

MaisPB – Depois do sucesso e performance estonteante do HQ “O Grande Xaram”, você apresenta agora O Tesouro, uma história bem real do Rio de Janeiro. Vamos começar por aqui?

MD – Olha, essa ideia de ‘sucesso’ é enganosa. Terei que dividir a resposta em duas etapas: Fico feliz que tivemos algumas ótimas críticas com ‘O Grande Xaram’. Mas, mesmo assim, HQs para adultos continuam sendo um produto para um nicho bem pequeno. Se você publica uma HQ por uma editora de renome, as redes sociais e o expertise da editora transferem alguma visibilidade para a obra. No caso de ‘O Tesouro’, é uma obra independente, não atrelada a uma editora. Toda a divulgação é feita por mim e uma amiga minha.

MaisPB – O desenho é tudo junto ao texto, né?

MD – O fato é: Eu não desenho o suficiente para fazer uma hq sozinho, então tenho que contar com um ilustrador. E como eu tenho um bom entendimento de desenho, eu procuro trabalhar com ilustradores talentosos – como é o caso do Alex Genaro, que tem uma beleza no traço e uma habilidade pra transmitir ao leitor o desenrolar da trama de forma clara. Tem gente que faz quadrinhos com desenhos propositadamente toscos, ou stick figures, ou talking heads; nada contra quem faz isto, pode ser bacana. Apenas, não é este nosso objetivo. Agora, mesmo com todo o amor que nós todos temos por quadrinhos, um profissional desta qualidade tem que ser pago. Não temos patrocínio, há uma grande oferta de títulos estrangeiros, quadrinhos online gratuitos, pirataria, então a questão econômica da produção de uma hq independente é muito delicada. Contar com um ilustrador talentoso representa um custo variável, dependendo do nome e do número de páginas. Mas é um custo considerável para uma pessoa física, e tem que ser embutido no preço ao leitor.

MaisPB – E a sensação de ver a histórias em movimento?

MD  – Eu adorei o processo de ver histórias que eu criei sendo transpostas para a linguagem dos quadrinhos – e minha participação neste processo se deu de forma diferente na hq anterior para este agora. Mas, a questão econômica é o nó górdio: não posso competir com alguma editora que está trazendo um quadrinho estrangeiro – revistas estrangeiras feitas por nomes famosos (algo que não somos) chegam aqui com os custos de produção já amortizados pelas vendas internacionais ou incentivos fiscais ou prêmios em seus países de origem (especialmente algumas européias), e podem ser vendidas só visando pagar os direitos autorais, tradução e o custo da publicação. Em geral vêm de países onde o hábito de ler quadrinhos é mais disseminado. E chegam já trazendo o burburinho de uma grife ou autores renomados. É fato também que o brasileiro compra poucos livros, por questões financeiras e falta de hábito. E aqui há ainda muito preconceito contra adultos que leem quadrinhos. No nosso caso, procuramos fazer hqs com conteúdo, não são ‘dois sujeitos musculosos trocando socos’. Creio sinceramente que qualquer professor de letras ou literatura que ler ‘O Grande Xaram’ ou ‘O Tesouro’ verá qualidade ali. É um material que poderia ser lido por alunos a partir dos quinze anos de idade – os desenhos trazem interesse para o conteúdo, e o complementam. E pode ser lido por pessoas de setenta anos também. Mas muita gente ainda tem preconceito contra a mídia hq, contra os quadrinhos enquanto linguagem. Por conta disso tudo, com exceção das graphic novels ligadas ao universo do Maurício de Sousa, as tiragens do quadrinho BRASILEIRO para jovens e adultos tendem a ser menores, e um quadrinho brasileiro mais elaborado acaba saindo mais caro na comparação – porque, além do custo da publicação, precisa cobrir também o custo de produção (imagético) da hq. No estado de São Paulo há o PROAC, um prêmio estadual de fomento à produção de quadrinhos, e mesmo assim só contempla um número reduzido de autores. No resto do país, a realidade de tentar fazer quadrinhos é outra.

MaisPB – Fale sobre a realidade que se vê nas páginas de ‘O Tesouro’?

MD – O Rio de Janeiro – especialmente na periferia, a área metropolitana, o ‘Grande Rio’ – é sabidamente um lugar onde há violência. O cinema de ficção já mostrou isto, e bem, inúmeras vezes. Não é algo recente, filmes como ‘Amei Um Bicheiro’ (1952) e ‘O Assalto ao Trem Pagador’ (1962) tratavam deste universo. A peça teatral ‘Boca de Ouro’ é de 1959, o filme de Nelson Pereira dos Santos baseado na peça é de 1963. Estamos falando de obras com setenta, sessenta anos. E são grandes obras. A vida em uma metrópole é sempre uma fonte riquíssima de material. Creio que será sempre assim.

MaisPB – O que o motivou a trazer a história de Carlos, negro, pobre?

MD -0 Na verdade, a história foi tirada de um roteiro para cinema que eu escrevi na época em que fazia faculdade de cinema, em meados dos anos 1990. Eu ganhei meu primeiro computador, e escrevia muito – em quantidade, não necessariamente em qualidade – estava querendo ganhar desenvoltura no manejo do texto, como um jovem pianista que fica tocando escalas pra se desenvolver. O conto que originou o Xaram também é desta época. A primeira ideia da história ‘O Tesouro’ foi o vidro traseiro do carro crivado de balas. A partir daí é que foi criado tudo.  Na época em que escrevi, a história se passava ‘no presente’. Pelo perfil sócio-econômico do personagem, ele tanto poderia ser branco ou negro. Mas como depois tem a parte dele na zona sul, onde ele chega já ‘abonado’, o choque dos frequentadores da zona sul com ‘um personagem negro com os bolsos cheios’ poderia render mais contraste, seria interessante ver esta interação. Entra aí a questão do conceito prévio já formado no imaginário das pessoas, o pré-conceito.

MaisPB – Quando a gente se envolve com a sua HQ, temos a convicção que Carlos roubou a grana ou está certo o ditado popularesco de “quem rouba ladrão, tem cem anos de perdão?

MD  Eu prefiro que as pessoas leiam e decidam isso por si próprias. Mas, peço que se coloquem no lugar e posição do personagem. – Se eu estivesse ali, e vivesse naquele ambiente, eu faria isto? E se NÃO fizesse, seria por convicção moral, ou medo das possíveis consequências?

MaisPB – Sim, a história de O Tesouro é uma resenha político-social , do Brasil de sempre. Vamos falar sobre isso?

MD  Já falamos da violência mais acima. A questão da religiosidade daquela família é calcada na observação da realidade, já era assim nos anos 1990: além da igreja católica, diferentes cultos evangélicos têm grande penetração nas camadas populares. Não é o meu universo, mas conheci e conheço pessoas que estão inseridas neste contexto. A história se passa nos anos 90, até onde sabemos, tudo indica que a ascensão das milícias é algo mais recente, ainda não ocorria na época retratada (ou ocorria apenas muito pontualmente em alguns lugares). Muitas famílias que moram em locais onde há um poder paralelo, optam por inserir seus filhos desde pequenos em um culto evangélico, também como forma de mantê-los longe da tentação de ingressar no poder paralelo.

MaisPB – A história é sua, aliás, muito boa, e a arte de Alex Genaro, com participação de Pedro Okuyama. Vamos falar dessa parceria importantíssima?

MD – Esta é a maravilha da internet: eu posso começar um contato com uma pessoa que não conheço pessoalmente, e se esta pessoa notar minha seriedade e compromisso com o objetivo, começarmos uma parceria. Para haver confiança, tenho que honrar os compromissos assumidos. Quando você faz um primeiro contato é sempre bom ter um conhecido em comum, ou um portfólio que te dê algum respaldo: o mundo está cheio de picaretas, e a internet, então, nem se fala.

MaisPB Então, você não conhece Alex, nem Pedro?

MD – Até hoje NUNCA estive presencialmente com o Alex ou o Pedro – Alex mora em outra cidade, Pedro mora em São Paulo; e, além disso, boa parte da hq foi elaborada no ápice da pandemia, não daria pra ficar marcando encontros presenciais. Conversávamos todas as semanas por rede social ou email, eu enviava algumas imagens de referência ou esboços quando sentia que era necessário, eles me enviavam material. De certa forma, atuei também como editor. Iniciamos assim uma relação profissional, que pra mim foi imensamente satisfatória – espero que tenha sido para eles também. Em parte, já tinha sido assim em ‘O Grande Xaram’: só fui conhecer o Allan Alex pessoalmente em um evento literário, cerca de um ano depois de a produção da hq ser concluída, toda a parte da elaboração da hq foi feita sem nenhum encontro presencial.

MaisPB – O desenho é tudo né?

MD – Estudo desenho há anos, leio quadrinhos desde sempre, creio que sei ver quem tem um trabalho que casa bem com a história a ser contada. Já me indicaram ilustradores os quais, quando eu fui conferir o trabalho deles em outras hqs, não senti afinidade – não vou citar nomes, claro. E aí eu declinei. Acho que eu consigo me comunicar razoavelmente bem com os ilustradores, se houver alguma dúvida que não dê pra resolver só com texto eu faço um rascunho. E eles são grandes profissionais, muito talentosos, e todo mundo quer que o resultado final fique bom. É uma carga de trabalho dura a de um bom ilustrador, fora os anos (ou décadas) de aperfeiçoamento que ele levou pra conseguir chegar neste estágio: falamos de milhares de horas de estudo e treino.

MaisPB – As cenas de sexo são incríveis, maravilhosas, para mostrar que gozar é necessário, principalmente para Carlos, que mesmo tendo o nome de Drummond, nunca foi gauche na vida. Diz aí?

MD –  Essa prática da iniciação sexual do adolescente com prostituta era muito comum na minha geração, entra uma questão de ‘rito de passagem’ ali, muitas vezes é uma imposição social. O Alex Genaro é três anos mais novo do que eu, crescemos com muitas referências em comum, então acho que ele entendeu perfeitamente a ambientação. A ideia de colocar em determinado momento a mulher apenas como um ‘recorte branco’ tinha como função primordial o visual, o contraste do branco contra o fundo preto causa impacto, como numa xilogravura. A função secundária dessa ideia era de significado – excluir o apelo sensual e mostrar que num ambiente daqueles a mulher é despersonalizada.  Gosto do quadro da maneira que está, mas quando ele ficou pronto cheguei a alimentar uma nova ideia na cabeça: E se depois transformassemos o ‘recorte branco’ da mulher em um outdoor? Se aquele espaço que agora está em branco fosse ocupado por logotipos do Mcdonald’s, o coelhinho da Playboy, Mercedes-Benz, Rede Globo, chapéu do clube do Mickey, Nike, Adidas e palavras chaves como ‘Nintendo’, ‘Nestlé’, ‘Miami’, ‘Shopping Center’, ‘Loiras’? Se transformássemos a mulher num símbolo do mundo burguês, do qual aquele dinheiro encontrado permite ao rapaz desfrutar? Na época debati a respeito com dois velhos conhecidos – um deles o Eduardo Arruda, que faz uma tirinha em hq pro jornal O Globo – , temi que poderia soar excessivamente panfletário e ainda correr risco de problemas legais, por usar marcas registradas. Abandonei a ideia e nem cheguei a falar com o Alex a respeito – ele só vai saber agora (risos).

MaisPB – O rádio não morreu com a Internet e a HQ continua em alta e nunca vai acabar, né?

MD  Não, não vai acabar. Vai sofrer transformações, eu já vi hqs online onde os cenários se movem, onde o leitor tem o recurso de girar a cena por mais de 180 graus. Se as hqs continuarão por muitos anos ainda saindo em papel, isso não sei dizer.

MaisPB – O ano é 1992, num subúrbio do Rio, mas pode ser agora, nesse 2023 não é – o Rio permanece em tensão e o mundo nem se fala, né?

MD- A tensão faz parte da existência humana – e o mundo está cada vez mais interligado, pela internet, whatsapp. Em 1850, se ocorresse uma guerra na Ucrânia, só uma dúzia de pessoas no Rio de Janeiro tomaria conhecimento disso – seria algo vago:“-Ucrânia? Onde fica isso?” Hoje, um prédio na Ucrânia é explodido por um míssil, e um minuto depois vc vê no twitter um vídeo mostrando a mãe desesperada porque a filha estava lá dentro. O drama alheio salta diante dos seus olhos. E o drama está em toda parte.

MaisPB – Eu achei genial os irmãos ficarem com o dinheiro, apesar de no final, o ladrão termina sendo ele. Você concorda?

MD – Temo que esta pergunta pode acabar dando ‘spoiler’ para quem ainda não leu nenhuma página da hq. Mas, respondendo à pergunta: realmente não sei… Tem a questão da religiosidade da família, o personagem foi criado naquela mentalidade. Isso fica arraigado, para o bem ou para o mal. Gosto muito de futebol, e desde criança sempre ouvi elogiarem os ‘atacantes oportunistas’. Neste sentido da palavra, um oportunista é aquele que sabe identificar uma oportunidade, e agir prontamente. Enfim, cada leitor fará uma diferente interpretação.

MaisPB – Você já falou do nosso mestre, o paraibano Mike Deodato. Vamos voltar a ele, a importância desse gigante paraibano?

MD –  É, eu sempre que posso nem uso o prefixo ‘Mike’, prefiro chamar de Deodato Filho, pois era o nome que ele usava quando comecei a acompanhar o trabalho dele, hqs brasileiras de terror, e uma hq de guerra com textos do Júlio Emílio Braz que me impactou muito. Além do grande desenhista, consagrado, Deodato foi sempre de uma generosidade imensa para conosco: permitiu que uma frase sua fosse usada na contracapa de ‘O Grande Xaram’ e gravou um vídeo onde folheia ‘O Tesouro’. Um gesto destes vindo de alguém com todo o renome que ele tem, isto ajuda muito a gente. Espero algum dia poder conhecê-lo pessoalmente, e agradecer por toda a boa vontade que ele teve.

MaisPB – Vocês já estão pensando em algo para este ano?

MD: Até o momento, não. Há paixão da parte dos envolvidos. Ideias e textos guardados em nuvens e hds, existem vários. Esta hq ‘O Tesouro’, embora ela se encerre ali, há espaço para muitos futuros desdobramentos. No roteiro para cinema que escrevi nos anos 1990, havia esta parte dos garotos encontrando o carro, e havia a outra parte, mostrando como aqueles ‘pacotes’ foram parar no carro. Isto já está escrito em formato de roteiro audiovisual. Mas há material potencial para muito mais, como estará a vida da família um ano depois; que impactos aquele acontecimento gerou na vida daqueles personagens? Há também um material que considero muito bom para uma outra história do ventríloquo Xaram. Há um outro texto que poderia render uma graphic novel de ao menos 80 páginas. Mas só poderá se concretizar caso haja um outro modo de financiamento. Falta algum editor que queira investir na produção de quadrinhos nacionais. Ou alguma empresa que queira patrocinar a produção. Quadrinhos são uma arte de produção relativamente barata; ainda assim, precisamos de um Mecenas. Ou vários.

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