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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

O que a língua nos ensina

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publicado em 25/11/2021 às 17h23

Num futuro bem próximo, não poderemos mais dizer “verde de inveja”, “amarelo de covardia”, “branco de medo”, “roxo de raiva” ou “vermelho de vergonha”, pois, em algum lugar, de algum modo, estas expressões irão ferir a susceptibilidade de alguém ou de algum grupo. Tudo isto porque existe um policiamento sem tréguas à língua, querendo imputar-lhe o que não existe.

Algum iluminado decidiu que o verbo “denegrir” é ofensivo às pessoas que têm a pele escura. Nada mais falso. É querer dar um sentido que não existe no termo. Pode ser que alguém o utilize para ofender os negros, o que é condenável, mas isto não determina que o verbo em questão tenha sido criado para esta significação particularíssima.

Derivado do adjetivo de primeira classe latino “niger” (masculino), “nigra” (feminino), “nigrum” (neutro), o verbo “denigrir”, preferível a “denegrir”, por recuperar a sua raiz erudita, tem o sentido de tornar negro, de obscurecer, de manchar, associado, contudo, à significação de funesto, de fúnebre, que causa a morte ou a infelicidade, de acordo com o que nos explicam Ernout e Meillet, no seu Dictionnnaire étymologique de la langue latine.

Não há, portanto, nenhuma ofensa dirigida aos negros ou a quem quer que seja, mas um significado a revelar uma contingência humana, que nos parece ser proveniente do medo real do homem com relação às trevas ou o medo moral de ser atingido na sua honra, manchando-a. Por isto mesmo, o adjetivo “niger”, em latim, se emprega quase sempre em oposição a “candidus”, o brilho que denota a pureza. Candidatar-se deriva do uso, na Roma antiga, de uma toga cândida, de modo a demonstrar a clareza das intenções do candidato… Pelo desvio do termo, vamos proibir os termos candidato e candidatar-se?

Talvez estas mentes iluminadas não saibam que o escrever da esquerda para a direita, adotado pelos ocidentais, seja de origem religiosa, por temor à escuridão. Os sacerdotes gregos, voltados para o norte, de modo a observar o voo dos pássaros e deles poder reconhecer os auspícios (literalmente, observar as aves, auis spicĕre), constataram que o oeste ficava à sua esquerda e o leste, à direita. Como a escrita grega se realizava fazendo voltas, como o arado puxado pelo boi no campo, daí o seu nome de “bustrofédica”, decidiram que a escrita deveria ser da esquerda (oeste) para a direita (leste), saindo da escuridão para a luz.

Em todas as civilizações, o homem demonstra o seu temor com relação às trevas (foto) reais ou psíquicas. O fogo, que traz a luz, é determinante para separar homens e animais, não só porque o homem se afasta dos predadores noturnos, mas porque permite comer cozido, enquanto os animais comem cru, dando início ao que chamamos de civilização. Eis aí o belíssimo tema de Prometeu acorrentado, de Ésquilo.

Se as mentes iluminadas estão ardentemente à procura de um cerceamento da língua, eu lhes darei dois vocábulos que deveriam não ser mais usados, ainda que o léxico os abrigue. O primeiro é o verbo “judiar” e os substantivos “judiaria” e “judiação”, uma ofensa ao povo judeu, a quem imputaram a culpa pela morte de Cristo. Morte de que ninguém é culpado, por estar nos planos de Deus e por ter sido escolhida pelo próprio Cristo.

Se estes termos não foram banidos do léxico – e não devem ser, pois fazem parte da história da língua –, pelo menos já não os ouço com frequência e tenho certeza de que o Sr. Uso, senhor supremo da língua, os tornará obsoletos.

O segundo termo, usado à larga, em plena atividade do uso linguístico é o substantivo/adjetivo “escravo”, o substantivo de radical dinâmico “escravização” e o verbo “escravizar”. Estes são termos realmente ofensivos, embora muita gente não saiba, dirigidos a um povo. O vocábulo é oriundo do latim tardio “sclavus”, proveniente de “eslavo”, tendo em vista o grande número de eslavos submetidos à perda da liberdade por outros povos. Desconheço, no entanto, que os eslavos atuais estejam reclamando contra o termo, usado sem moderação em várias línguas.

Igualmente a “judiar”, “judiaria” ou “judiação”, sou contra que os termos “escravo”, “escravização” ou “escravizar” sejam banidos da língua, pois eles nos ajudam a compreender a história do homem e de suas atrocidades, mostrando que, em algum momento, um povo foi dura e cruelmente submetido por outro povo, não pela cor da pele, mas porque tinha menor poder bélico. Os gregos, por exemplo, surraram várias vezes os persas, criaram uma cultura que constitui a base da sociedade ocidental, e foram submetidos pelos romanos. Quando isto aconteceu, a partir do século III a. C., os gregos já haviam criado a escrita alfabética, a épica, a lírica, a tragédia, a arquitetura dos templos e da estatuária, a filosofia, a política, a democracia; já haviam colonizado o sul da península itálica, de Nápoles à Sicília; já haviam se expandido com Alexandre, fundado a Biblioteca de Alexandria e promovido uma das maiores revoluções culturais da bacia do Mediterrâneo, com a poesia alexandrina de Teócrito, Apolônio de Rhodes e Calímaco. Mas foram submetidos por um poder bélico maior, o romano, que adotou a sua cultura e beneficiou-se dela, com os servos que chegaram a Roma e se tornaram preceptores e, de quebra, iniciaram a literatura latina, transformando o latim numa língua de cultura.

Querer pregar em “denigrir” um sentido que o verbo não tem é, no mínimo, falta de conhecimento da língua e de sua história. A língua nos ensina, querer apagá-la, não é só ditatorial, mas uma violência irreparável contra o que podemos aprender.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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