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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

A criança na pandemia

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publicado em 06/09/2020 às 09h48
atualizado em 06/09/2020 às 17h41

A criança dentre as criaturas é a mais vulnerável, pois sua condição psíco-biológica encontra-se em construção. E tudo que se fizer a ela será incorporado ao processo de formação.

Conheço um casal que possui uma filha de oito anos. Contava-me a mãe, em tom de desabafo: “Estou passando por momento difícil por conta da pandemia. Júlia temuma avó a quem é apegada. Dedica-lhe muito carinho. Todo esse clima, os noticiários e as conversas das pessoas sobre a problemática atual, a afetou. Ligada em todos acontecimentos, indaga e pede explicações. Preocupada, a mãe pretende encaminhá-la a um psicólogo infantil. Acorda de madrugada com sintomas de medo, pânico. Perguntou: “Filha o que você tem que não está conseguindo dormir? Ela respondeu: tenho medo de dormir e acontecer algo comigo e com a senhora, e aí nem eu vejo e nem a senhora vê. Acho que isto está afetando a cabecinha dela. Foi conversar com a pediatra da criança que confirmou sua ida a outro profissional para tratar desses transtornos emocionais. Na conversa relatou que a demanda em seu consultório durante essa pandemia cresceu assustadoramente e que 90% das clientesapresentam problemas de insônia, irritação, medo e crise de ansiedade. Crianças com 5 anos com ansiedade? Emsua maioria, não assiste telejornal, mas escutam conversas o que provoca o pânico e o medo de perder a avó, a mãeou o pai.  Isto tudo tem muito com o que está ocorrendo. Mexeram com a rotina delas, colocaram-nas em frente a um computador para assistir aula. Cadê os colegas? Cadê os avós que lhe dão tanto amor? Quer coisa melhor do que avô e avó? O que está acontecendo na cabecinha dessas crianças? “Eu estou passando por isso aqui em casa e a minha é quase uma mocinha. Esse comportamento apresentado é a forma que têm de expressar sentimentos e aí vem a resposta: “Como mãe encontro-me em estado desesperador”.

Verifica-se nesse relato a maneira como estão lidando com a pandemia. Não está sendo fácil para crianças e nem para as mães. Possuíam costumes e hábitos, de escola, de amigos, de visitas à casa dos avós, dos parentes, e de repente foi tirada a liberdade de que tanto necessitam, correr, gastar energias, e essa falta está trazendo problemas emocionais.

O homem, ao nascer, diferentemente de outros animais. Não é um ser acabado. Necessita passar por um processo de desenvolvimento bio-psíquico-social para concluir sua formação. O seu evoluir é motivo de estudos em diversas áreas. Todos visam explicar o como, o quando e o por que acontece. Os indivíduos têm os mesmos ciclos de vida, porém desenvolvem a construção formativa de maneira diferenciada, dependente do código genético e das relações com o meio ambiente, o que vai dar como resultado a personalidade id-ego e superego na teoria de Sigmund freud (1920). Outro estudioso sobre a formação foi o biólogo Piaget (1919), que dividiu essa evolução em quatro estágios: sensório–motor (0 a 2 anos), pré-operatório (2 a 7anos), operações concretas (7 a 12 anos),operações formais (12 anos em diante). O psicólogo Vygotsky (1934), se opõe a Piaget, por defender que essa formação estrutural independe de estágios biológicos, mas da reação e interação da pessoa com o ambiente social estimulante. teóricos como Wallon, Skinner, Wundt, Leontief etc. O objetivo do estudo de cada um deles é tentar fundamentar e tornar transparente o comportamentocognitivo e biopsicossocial do indivíduo.  

Invoquei esses teóricos para enfatizar a importância dessa fase da vida e contextualizá-la nesse momento de pandemia que vivenciamos. Considerando que essesmeninos e meninas vivem em certas condições diferenciadas de contextos de diversas categorias: gênero, classe, etnia, religião, espaço geográfico, não raciocinam como os adultos e apenas gradualmente se inserem nas regras, valores e símbolos da maturidade psicológica. Isto se constata. Basta um olhar para as de classe abastada e as da proletária. Definir a infância pode ser feita com argumentações diversas, dependendo das referências que se busca para concebê-las. Essa inserção se dá mediante dois mecanismos: assimilação e acomodação. Estes são os dois polos da interação entre o organismo e o meio que é a condição do funcionamento biológico e intelectual (Piaget, 2003, p.360). Rousseau trata desse entendimento em seu livro Emilio (1972); entende que os infantes sofremmudanças gradativas influenciadas pela própria evolução socioeconômica cultural. Elas têm a maneira própria de ver, pensar e sentir. A estudiosa da educação infantil, Sônia Kramer (2003), apregoa: “aceitar as crianças em suas formas próprias de expressão, de socialização, com especificidades e diversidades é requisito fundamental da concepção de criança como produtora e reprodutora de culturas”. Nessa mesma direção aponta Martins Filho (2005):“o processo de socialização não consiste só em uma constante adaptação das crianças ao universo social, mas também, exerce um papel atuante na dinâmica da constituição deste universo”.

A globalização ocorrida no final do século XX e início do século XXI exacerbou a consciência global tendo como mola propulsora a informática e o computador, ferramentas dessa expansão, que encurtou o tempo e as distâncias, configurando uma nova concepção de infância. Nessa quarentena vive-se esta situação: a criança por falta de opção liga-se com a tecnologia, que agora substitui o amigo, o professor etc. Isto já estava acontecendo mas,agora, tornou-se obrigatório. Para o pré-adolescente o grupo é mais importante que qualquer outra pessoa. É através dele que busca sua identidade. Baniu-se orelacionamento social.  O tablet serve para o estudo,tornou-se companhia e entretimento.

A criança como ser social se adapta às contingências históricas, sociais, ideológicas, políticas e culturais de cada época. É uma pessoa em processo permanente de desenvolvimento e de atualização. Nesse momento singular não seria diferente. São vítimas do próprio contexto social, individual e familiar. Os pais também não estão sabendo lidar com a situação; os que têm condições estão procurando ajuda de profissionais. E os outros?  E as crianças pobres? o que será delas?  Nessa fase da vida o que lhes acontece produz marcas indeléveis. O que e como vai ocorrer após essa pandemia? E as sequelas que irão surgir? É uma incógnita? Só o tempo dará a resposta. Essa é a representação da infância que emerge neste século.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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