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Adriana Araújo diz que médico quis amputar perna de sua filha

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publicado em 04/11/2015 às 15h36
atualizado em 04/11/2015 às 12h42

A apresentadora Adriana Araújo, 43, do “Jornal da Record”, descobriu no quinto mês de gestação que sua filha era portadora de hemimelia fibular, uma síndrome ortopédica que na forma mais grave afeta membros inferiores e superiores.

Quando Giovanna estava com um ano e meio, a jornalista se confrontou com um veredicto médico de que seria “melhor amputar” o pé e um pedaço da perna direita.

A mãe decidiu seguir outra linha de tratamento. Dez cirurgias corretivas depois contrariou o prognóstico. Ao festejar os 18 anos de Giovanna em outubro, escreveu uma “carta ao médico que nunca enxergou minha filha de verdade”.

A seguir o depoimento à Folha e trechos do texto que a jornalista escreveu para fechar um ciclo doloroso, mas vitorioso.

“Esperei muito os 18 anos da minha filha. É como se fosse a linha de chegada de uma maratona difícil e precisava cruzar a linha de chegada com Giovanna vitoriosa.

Ela nasceu com uma síndrome congênita, a hemimelia fibular. Descobri na gestação que ela teria diferenças físicas, ortopédicas. O grau mais elevado atinge os membros superiores.

No caso dela, atingiu um, a mão direita, que só tinha dois dedos. Foi feita uma correção para que ela tenha a função de pinça e consiga pegar coisas pequenas.

O pé esquerdo tinha quatro dedos e parecia um cabinho de guarda-chuva. Nesse caso, fez outra cirurgia e usou gesso até os sete meses.

O complexo era a perna e o pé direitos. Ela só tinha três dedos e praticamente não se via o pé. O calcanhar era grudado na perna. Como nasceu sem a fíbula [osso longo situado na lateral da perna], a perna era arqueadinha.

Logo que ela nasceu a levei ao doutor César [Lima], do Hospital Ortopédico de Belo Horizonte, que era médico do meu convênio e fez as primeiras quatro cirurgias.

Só que todos os meus amigos insistiam para que eu a levasse a um hospital de referência. Após meses de espera, fomos atendidas.

O médico viu minha filha por 15 minutos. Ele se chamava Gabriel ou Rafael, não me lembro bem. Era jovem, de pele e cabelos claros.

Foi uma coisa tenebrosa. Ele deu o veredito ali de pé, enquanto Giovanna andava de um lado para o outro atrás de uma bola usando um aparelho ortopédico que dava àquele pedacinho de gente um ar de Robocop.

“Mãe, é melhor amputar”, disse o médico. A imagem imediata que vem à cabeça é alguém serrando o pé da sua filha e jogando numa lata de lixo. É muito doloroso.

Corri atrás de outra linha de tratamento. Óbvio que o processo foi muito doloroso e difícil, mas minha filha conseguiu fugir da amputação.

No entanto, todas as vezes que eu me despedia dela na porta do bloco cirúrgico, eu pensava: e se ele estiver certo? E se eu não a reencontrar viva? E se tiver uma complicação e o resultado for mesmo a perna amputada?

E todas as vezes pensei em desistir. Mas não desisti. Graças a ela.

Quando minha filha completou 18 anos, a gente fez tudo que ela tinha direito: festa, presente, homenagens. Mas eu precisava encerrar essa longa história. Por isso escrevi um texto intitulado “Carta ao médico que nunca enxergou minha filha de verdade”.

Precisava tirar aquele diálogo de dentro de mim:

– Mãe – dizia ele – quantas cirurgias ela já fez em 1 ano e meio?

– 3, respondi.

– Quantas cirurgias mais você imagina que ela irá fazer, mãe?

Fiquei em silêncio.

– Vai ser assim, ele prosseguiu, passa 1 ano, uma cirurgia. Outro ano, outra cirurgia. Ela cresce mais um pouco e volta para o bloco cirúrgico. Risco demais. Sofrimento demais. Não vale a pena. Melhor amputar.

A Giovanna continuava atrás da bola, sem nada perceber. E eu, atrás de uma luz, de algo em que pudesse me agarrar.

E aí veio um número na minha mente: 18.

Tinha poucas forças e poucas palavras pra dizer a ele. Mas disse.

– Ela está andando com as próprias pernas, com os próprios pés. Você não está vendo?

E dei a minha decisão de mãe, assim, com a perna bamba, o coração disparado e o choro por um fio.

– O dia que ela fizer 18 anos, se ela quiser amputar o pé, ela vem aqui, te procura e autoriza a amputação.

Eu precisava colocar tudo isso pra fora. Para aquele médico, é como se uma criança fosse um objeto: corta, emenda um outro pedaço. Eu só chorava e queria sair daquele hospital.

Depois de me acalmar, liguei para doutor César.

Ele falou uma frase que foi o contraponto: ‘O pior membro é melhor do que uma prótese’. Por mais deformidade que tenha é uma mão, um pé. Você pode tocar, sentir a pele.

A amputação é a última hipótese. Doutor César me disse que dava pra formatar uma perna e que Giovanna ia conseguir andar e ter independência.

Escrever a carta foi cruzar a linha de chegada e gritar: ‘Acabou!’ [chora].

Talvez aquele outro médico não tenha tido a noção do peso das palavras dele para uma mãe fragilizada. Era como uma maldição.

E foram dez cirurgias: uma no pé esquerda, uma na mão direita e todas as outras na perna e no pé direitos.

Foram muitos meses com a perna e o pé engessados, muitos meses de cadeira de rodas, de muletas, muitas dores, muita morfina e muito medo.

A última cirurgia foi em junho de 2013.

Cada cirurgia são duas na verdade. Se faz uma para alongar, colocar os pinos e todos os alongadores. E se faz outra para tirar. Ela ganhou alta em 2014.

A perna direita nunca cresceu como a esquerda. A medida que ela crescia, a tíbia arqueava de novo. Giovanna poderia ter uma diferença de 15 centímetros entre as duas pernas se nada tivesse sido feito.

Em dezembro de 2005, ela estava com cinco centímetros de diferença e tinha que fazer um alongamento. O médico de Belo Horizonte indicou um colega de São Paulo.

Era um especialista do Albert Einstein [Hospital] que tinha apresentado em um congresso nova maneira de abordar o problema da Giovanna. Perguntei ao doutor Amancio [Ramalho] quantas pessoas ele já tinha operado: seis.

Cheia de dúvidas, liguei para doutor César e ele me disse: “Como médico não posso decidir por você, mas se fosse minha filha eu faria”.

Se teve um médico que deixou marcas terríveis no meu coração com um prognóstico fatalista, eu tive outros que me guiaram pela mão.

As demais cirurgias de Giovanna foram feitas pelo doutor Amancio. Encontrei dois médicos humanos que entenderam a necessidade de orientação, mas também de afeto.

Quando eu me debatia em dúvidas, olhava pra Giovanna e via uma menina que mesmo quando tinha dores, quando estava cheia de pinos nas pernas, alongadores e uma coleção de cicatrizes, seguia pelo mundo com um sorriso de esperança.

Via a menina que aquele outro médico não enxergou.

Nesse processo todo, Giovanna sempre foi tranquila, consciente. Se fisicamente ela tinha um desafio a vencer, emocionalmente parece que veio preparada.

Ela tem uma maneira muito especial de lidar com as suas diferenças. Tem muitas cicatrizes na perna direita, mas usa short, sainha. Não se incomoda.

Outro dia, ela perguntou: “Mãe, eu sou deficiente físico?” Ela tinha estudado na escola sobre as leis voltadas a portadores de deficiência.

Procurei explicar assim: você pode ser chamada de deficiente, mas não deve se incomodar. Se as pessoas a classificarem assim dá um desconto. Elas não conhecem suas eficiências e suas habilidades.

Minha filha entendeu desde cedo que tem um diferença física que não ia torná-la incapaz e que ela podia fazer muita coisa.

Ela me seguiu pelo mundo em mudanças para Brasília, São Paulo, Nova York e Londres.

Nesse momento, ela quer fazer medicina. A preocupação é se vai consegui dar ponto, suturar, fazer cirurgia por conta da mão direita.

Disse que deve tentar. Se não for possível, vai achar outro caminho.

Eu não tenho vontade de ir atrás daquele médico da carta. Se ele ler esse texto e se lembrar da gente, que pense na importância de tratar o paciente como um todo, não só olhando um raio-X e dando um parecer técnico.

Espero que a minha filha seja uma médica de verdade. Capaz de entender as dores do corpo, mas também da alma.

Capaz de saber que as palavras duras e secas de um breve diagnóstico podem machucar profundamente e deixar cicatrizes.

Capaz de entender que ser médico não é apenas dominar a teoria. É também ser capaz de se colocar no lugar do outro, com isenção e ética, mas também com respeito e um mínimo de compaixão.” 

Folha

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