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Jornalista, cronista, diácono na Arquidiocese da Paraíba, integra o IHGP, a Academia Cabedelense de Letras e Artes Litorânea, API e União Brasileira de Escritores-Paraíba, tem vários publicados.

Deus te abençoe, Mestre!

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publicado em 21/06/2023 às 07h00
atualizado em 20/06/2023 às 16h07

 

O lançamento do livro Com os olhos no chão de Gonzaga Rodrigues, na segunda-feira, no Jardim de Academus da Academia Paraibana de Letras, reafirmou quanto ele é amado e admirado. Familiares, amigos e conterrâneos de Alagoa Nova transformaram o evento em momento inesquecível, aspergido com o perfume da amizade, que não se dissolve na menor tempestade.  

Desço os desfiladeiros de Alagoa Nova como quem anda pelas veredas de Serraria, alimentado pelas paisagens que ficaram no recanto da memória, agora confessadas quando Gonzaga completa 90 anos de idade. Há muito perambulei pelas paisagens das grotas, dos riachinhos e dos partidos de cana recordadas em suas crônicas.  

Cedo ele pousou em Campina Grande, levado pela mãe que o desejava padre, mas do Seminário Diocesano migrou para a redação de jornais, no ano de 1951, em João Pessoa, onde encontrou espaço, alimento pelas aspirações de escritor, mesmo que tenha esquecido o poeta que queria mudar o mundo com seus poemas.  

         Gonzaga viveu a infância no mundo onde predominavam gestos desumanos, por isso olhava o chão para não tropeçar, mas na mente estabelecia a utopia do amor tendo como base o fermento que transforma vidas, como sugerido no Sermão da Montanha.  

Em quase cinco décadas de convivência, sem desvio da amizade ou mágoa, porque construída sem nada exigir, muito escrevi sobre a vida e a obra de Gonzaga, revelando-me seu admirador contumaz desde os tempos do terraço de Nathanael Alves, quando, em meados de 1970, jovem encabulado vindo de Serraria, bem de perto, contentava-me em descansar os olhos assombrados na sua figura que lembrava Dom Quixote, como o faço ainda hoje, sem aventurar desvendar os mistérios de sua obra, uma obra construída na crônica a partir de sua memória.    

A memória afetiva edificada com pequenos detalhes da paisagem rural do lugar nasceu, o verde de Alagoa Nova com seus caminhos e personagens, que se misturaram com o urbano de Campina Grande e João Pessoa, e 90 anos depois continua revivida em crônicas, preparadas com lirismo ou alicerçadas em fatos que marcam nossa História. Se estreou 1954, com texto assinado, uma crônica que abordava o cotidiano, no decorrer dos anos aprimorou o inconfundível estilo.  

Gonzaga é sútil em seus textos ao abordar, na sua maioria, a questão social, a vida dos excluídos, partindo da margem para o centro das questões camufladas pela sociedade dominante. Essa denúncia que somente o leitor atento observa. O que não conseguiu transformar em romance, na grande obra que gostaria de escrever, ele colocou na crônica, no texto que levou às páginas dos jornais durante mais de 70 anos.  

O que podemos dizer dele, um homem desejoso apenas de ser cronista, porque exigiu bastante do romancista ou do poeta. Com paixões, erros e acertos, tem sido o cronista que melhor captou a alma de nossa gente.  

A partir dele, descobri que a palavra escrita somente existe quando efetivamente atinge a condição de obra de arte, porque manifestamos o que sentimos e o que refletimos.    

Tudo o que tem significado na composição da vida fluente nestas nove décadas, serviu de registro, ajudaram a compor gradativamente este vasto aluvião na sua arquitetura humana. Tudo o que escreve vem da vertente da história do seu tempo e da sua própria história, como testemunho e memória.  

Em todos estes anos, sempre a ele recorri como a um pai e ele, infinito em sua bondade, recolhe-me em benevolência. Nunca fiquei órfão depois da partida de Nathanael. Gonzaga foi meu companheiro de caminhada literária, porque sentimos a mesma dor e carregamos a sina de termos nascidos em uma terra marcada pela ganância de uns poucos, milenarmente sufocando minorias, que interrompem voos, mas não imobilizam a memória.    

Recorro a Fernando Pessoa, em seu Ficções do interlúdio:  

Mestre, são plácidas  

Todas as horas  

Que nós perdemos,  

Se no perdê-las,  

Qual numa jarra,  

Nós somos flores.  

Olhando para ele, em tantos dias e noites iluminadas, como naquela segunda-feira do lançamento do seu Com os olhos no chão, nesse entardecer de nossas vidas, ele aos 90 anos e eu beirando os 70 anos, somente posso dizer, no tamanho de minha crença, “Deus te abençoe, Mestre!”.  

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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