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Entrevista: poemas de João Cabral de Melo Neto na voz de Helô Ribeiro

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publicado em 10/07/2021 às 12h09
atualizado em 10/07/2021 às 12h38
Crédito:CARLOS CHICARINO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Codigo imagem:18244

Kubitschek Pinheiro MaisPB
Foto: Claus Lehmann

Quem conhece a obra do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto, (1920-1999) autor de “Morte e Vida Severina” e muitos outros, quem conhece os seus poemas, sabe da importância dele para a literatura brasileira. Em seu novo álbum, a cantora paulistana, compositora e percussionista corporal, Helô Ribeiro está cantando a obra Cabral. Musicou dez de seus poemas, que agora compõem “A Paisagem Zero”, com Selo SESC.

Um disco que é uma comunhão entre música e literatura, muito embora João Cabral de Melo não gostasse de música, como está na canção “Outro retrato” de Caetano Veloso, no álbum Estrangeiro de 1989, no qual ele homenageia e faz uma” brincadeira” com os nomes de duas pessoas consideradas referências na cultura de nosso país, que são João Cabral de Mello Neto e João Donato, um poeta não gosta de música e músico que não gosta de poesia.

O trabalho da artista Helô Ribeiro, que já está nas plataformas de streaming é algo que o saudoso poeta gostaria muito. O primeiro single “O Rio” tem a participação do Barbatuques, grupo de percussão corporal do qual Helô é integrante desde sua criação, em 1995, e o clipe da canção que pode ser conferido aqui no MaisPB:

Nessa releitura da obra de Cabral, celebrado em 2020 pelo seu centenário de nascimento, a compositora transformou poemas consagrados em canções contemporâneas, com toques “de balada, rock e pop”, nas palavras do músico e pesquisador Luiz Tatit. Faz, assim, uma fusão entre o Nordeste de João Cabral e o cenário paulistano do qual Helô faz parte.

No álbum, o som das guitarras elétricas, teclados e efeitos eletrônicos se harmonizam e se fundem aos instrumentos tradicionais de orquestra, como cordas e metais, em uma estética múltipla e fragmentada. As faixas procuram lançar os poemas para além do universo acadêmico e borram a fronteira entre o culto e o popular.

Helô é formada em Letras pela FFLCH-USP, onde estudou com José Miguel Wisnik e Luiz Tatit e, desde então, busca explorar a intersecção entre música e literatura em seu trabalho. Já tem um disco solo autoral lançado em 2010, o “Espaço Invade”.

Severina no mundo

João Cabral de Melo Neto foi poeta, escritor e diplomata brasileiro. Ele fez parte da terceira geração modernista no Brasil, conhecida como Geração de 45.

Essa geração de escritores estava mais preocupada com a palavra e a forma, sem deixar de lado a sensibilidade poética. De maneira racional e equilibrada, João Cabral se destacou por seu rigor estético.

“Morte e Vida Severina”, que foi musicada por Chico Buarque de Holanda, na década de 60, é, sem dúvida, a obra que o consagrou. Além disso, seus livros foram traduzidos para diversas línguas (alemão, espanhol, inglês, italiano, francês e holandês) e sua obra é conhecida em diversos países.

Em entrevista ao MaisPB, a artista conta como pensou esse disco, ao homenagear o poeta que o Brasil inteiro festeja.

Foto: Claus Lehmann

MaisPB – Uma coisa rara, uma artista musicar os poemas de João Cabral de Melo Neto. Como aconteceu?
Helô Ribeiro – Aconteceu, em princípio, de uma forma circunstancial: Fui tocar com uma banda que tenho, chamada Sons & Furyas, em um espaço no centro de São Paulo, o Estúdio Lâmina, local conhecido por realizar eventos que fundem música e literatura. Na noite em que íamos tocar, por um acaso, aconteceria uma homenagem ao poeta João Cabral e algumas pessoas iam ler alguns de seus poemas. Neste contexto surgiu então a ideia de eu musicar um poema. Fui até uma livraria e escolhi um livro para dali tirar um poema. Era uma reunião dos livros Pedra do Sono e O Engenheiro. O que eu não imaginava é que me apaixonaria irremediavelmente por aquelas obras e que pouco tempo depois teria criado não uma, mas dez canções, que são as músicas que compõem o álbum A Paisagem Zero.

MaisPB – O “Estúdio Lama” tem seu nome em homenagem ao poeta, não é?
Helô Ribeiro – Sim, o curioso é que o Estúdio Lâmina, que foi a origem de todo o processo, tem esse nome em homenagem ao poema Uma faca só lâmina, de João Cabral. Acho então que conceber esse disco era algo que estava escrito nas estrelas.

MaisPB – Abre com Telescópios, que arrebenta. Um som fantástico. Vamos começar por Telescópios?
Helô Ribeiro – A faixa Telescópios nasceu do primeiro poema que aparece no primeiro livro de João Cabral, Pedra do Sono (1940-1941). Foi, para mim, o impacto inicial, o susto, a grande “fisgada”. No livro o título é apenas Poema. O cenário surrealista, as mulheres-peixes que vão e vêm nadando, tudo aquilo era fortemente visual e me capturou e cativou, como se eu estivesse assistindo um filme psicodélico. Quando fomos gravar a canção, o arranjo inevitavelmente acabou enveredando para algo com matizes tropicalistas, uma geleia geral que funde samba com rock ao som de guitarras alucinantes e metais. Importante ressaltar que tudo, absolutamente tudo adveio da poesia, da força das palavras.

MaisPB – O Fim do Mundo é um poema forte e parece bem apropriado para o momento atual?
Helô Ribeiro – Sim, infelizmente é um poema bastante apropriado ao pesadelo que vivemos hoje: é apocalíptico e grandioso (por este motivo optamos por um arranjo que traz certa solenidade através da força crescente dos metais). Estamos vivendo, como nação, essa sensação de fim de mundo e de juízo final, onde a morte ronda e o véu que voa (e que pode representar nossos sonhos e esperanças) acaba caindo no deserto. Uma visão pessimista mas que acaba encontrando redenção nos versos finais: “Em vez de juízo final, a mim me preocupa o sonho final”. Creio que esta é a preocupação de todos nós: como mantermos viva a chama, como nos mantermos fiéis a aquilo em que acreditamos.

MaisPB – A terceira faixa “A Viagem” é bem fiel ao poeta, com a participação de Mauricio Pereira, de quem Maria Gadu cantou uma bela canção que fala da faca na manteiga, de um homem solitário pelas ruas de São Paulo. Como veio essa sacada dessa viagem?
Helô Ribeiro – Curioso você mencionar o homem solitário que caminha pelas ruas da cidade na canção que Gadu interpreta, pois o poema A Viagem também aborda essa figura sonhadora e imersa em seu mundo particular. A participação de Mauricio nessa música caiu feito uma luva: um intérprete fenomenal, que quando canta encharca as palavras de sentimentos. Alguém que pode tranquilamente interpretar um poema sem ficar devendo nada. Sempre admirei seu trabalho e já havíamos feito coisas juntos no Barbatuques, grupo do qual faço parte. Acho que o Maurício se encaixa perfeitamente nesse eu lírico que mergulha num universo onírico, portanto chamá-lo para cantar essa música comigo foi uma escolha muito natural.

MaisPB – Gosto muito do poema “Os Primos”. E você canta com Alzira E, que teve sua obra numa releitura de Zélia Duncan. Vamos falar desse duo?
Helô Ribeiro – Sim, Os Primos traz uma imagem recorrente na obra de João Cabral: a pedra. O poema fala de alguém que reconhece seus primos nas estátuas de uma praça. Estátuas cujos olhos estão bulindo de vida presa. Essa chama que há em todos nós e que coexiste com nossas estruturas mais rígidas e petrificadas. A pedra e o sono. Alzira é essa chama, uma feiticeira poderosa que com seu canto move montanhas. Chegou já rompendo as estruturas, partindo as estátuas em milhões de pedacinhos brilhantes. A música estava em um tom muito agudo para ela cantar, então surgiu a ideia de ela declamar o poema no final da canção. Isto surgiu também como uma reverência à palavra, uma vez que estamos tratando aqui de um de nossos maiores poetas: o desejo de resgatar no álbum a tradição da poesia declamada, da palavra falada, e não cantada. O resultado foi bombástico, não ficou pedra sobre pedra.

MaisPB – Por que você não musicou um dos poemas de amor, de Cabral?
Helô Ribeiro – Eu acabei fazendo um recorte bem específico na obra do poeta, que são os poemas de seus dois primeiros livros: Pedra do Sono e O Engenheiro. A única exceção é o poema O Rio, que é posterior. Esses primeiros poemas são embebidos em uma atmosfera psicodélica e fortemente imagética, o que fez com que João Cabral chegasse a ser associado ao Cubismo e ao Surrealismo. Me pareceu que ali eu havia encontrado uma narrativa, uma unidade. O poema de amor vai ter que ficar para o próximo disco.

MaisPB – Você sabia que o poeta pernambucano não gostava de música?
Helô Ribeiro – Sim! É um fato notório de sua biografia. No livro A Literatura como Turismo, de Inez Cabral (filha do poeta), ela conta inclusive que João Cabral passou a detestar música na época escolar, pois era desafinadíssimo e o professor de solfejo o dispensava das aulas e o mandava jogar bola. Sempre custei a acreditar que um poeta pudesse não gostar de música, mas esta revelação é bastante esclarecedora: ser expulso pelos padres das aulas de canto deve ter sido traumatizante para o jovem João Cabral. Cometi, portanto, esta pequena ousadia de musicar seus poemas, mas o caminho “herético” já havia sido muito bem aberto por nosso querido Chico Buarque de Holanda com sua magistral versão musical de Morte e Vida Severina. Soube que o poeta aprovou, na época.

MaisPB – A última faixa “A mulher sentada” parece um quadro…
Helô Ribeiro – Interessante você falar em quadro: João Cabral era um amante das artes visuais, seus primeiros poemas são extremamente imagéticos e o poema A Paisagem Zero (que dá nome ao meu álbum) foi escrito pelo poeta em homenagem ao quadro de mesmo nome do pintor modernista pernambucano Vicente do Rego Monteiro. Contam que João Cabral era obcecado pelo quadro e chegou a adquiri-lo no fim da vida, pendurando-o em seu quarto. Pois bem, eu também sinto que A Mulher Sentada parece uma pintura: uma pintura de Chagall, com suas mulheres voando como pássaros pelos ares. Lancei recentemente o clipe desta canção, em que a artista Jojo Hissa utilizou colagens feitas a partir de quadros de Magritte, Chagall e Van Gogh. A arte de João Cabral, sobretudo em suas primeiras obras, se relaciona intimamente com o universo da pintura, e isto foi uma força motriz para eu compor as canções do álbum.

Foto: Claus Lehmann

MaisPB- Como se deu a gravação desse disco na pandemia?
Helô Ribeiro – O disco, na verdade, foi gravado antes da pandemia, o que foi uma sorte, pois pudemos registrar as músicas em um estúdio no meio da natureza, na Serra da Cantareira, aqui em São Paulo, num ambiente bastante acolhedor e livre de medos e maiores preocupações. No final de 2019 o álbum já estava pronto, masterizado e com projeto gráfico finalizado (pois teríamos uma edição física). O plano era lançá-lo no início de 2020, por ocasião do centenário de nascimento de João Cabral. Por conta da pandemia o projeto acabou sendo adiado e o lançamento só pôde acontecer agora, de forma virtual.

MaisPB – Já tocou com os artistas Hermeto Pascoal, Bobby McFerrin e Naná Vasconcelos. Como se deu essa experiência?
Helô Ribeiro – O encontro com esses grandes mestres se deu em função de eu ser integrante do grupo de música corporal Barbatuques. Hermeto e Naná participaram de nosso álbum AYÚ (Hermeto chegou a dividir o palco conosco em alguns shows, já Naná infelizmente partiu pouco tempo após lançarmos o disco). Com Bobby dividimos o palco em um show que ele fez no Theatro Municipal de São Paulo. Há uma confluência de linguagem e de concepção musical entre o Barbatuques e esses três músicos: nos pautamos muito na música orgânica, na interação e na improvisação musical. Tocar com esses artistas ímpares e inspiradores, nossos ídolos, foi das maiores emoções da vida.

MaisPB – Fale do seu primeiro disco?
Helô Ribeiro – Meu primeiro álbum solo autoral se chama Espaço Invade e foi lançado em 2010, com produção musical de Ro Fonseca. Traz algumas composições minhas e parcerias com colegas de vida e de trabalho, como alguns integrantes do Barbatuques e Vanessa Bumagny, minha parceira de banda no Sons & Furyas. É um álbum bastante intimista, que fala de meu mundo subjetivo. Eu diria que seu elemento é água: as composições são líquidas, fluidas, e estas, sim, falam de amor e de sentimentos muito pessoais. Os arranjos são mais doces do que em A Paisagem Zero (em que algumas músicas podem ser cortantes): uma música das esferas. Paralelamente a este disco, participei, antes e depois, de todos os álbuns do Barbatuques, alguns deles com composições minhas registradas (sobretudo nos álbuns infantis). Nesses álbuns, os processos de criação e arranjo sempre foram bem colaborativos e horizontais, com muita abertura para experimentações.

MaisPB- Vamos fechar com o grupo de percussão corporal Barbatuques com o qual você se apresenta e ministra oficinas regularmente no Brasil e no exterior?
Helô Ribeiro – Eu faço parte do Barbatuques desde sua criação, há 25 anos. Posso dizer que o grupo é parte indissociável de minha história e de quem eu sou. O Barbatuques é minha segunda família: muitas vivências, viagens mundo afora, experiências que compartilhamos. Crescemos juntos: nossas mudanças e crescimentos individuais se refletiram nas mudanças pelas quais o grupo passou durante todos esses anos. Um grupo com uma visão experimental, que faz música com os sons do corpo e tem como fundamento a interação. Em nossos shows, tocamos e criamos junto com o público o tempo todo. Acreditamos na música como uma forma de transformar o mundo. E isso se dá através de nossas apresentações e também do braço educativo que desenvolvemos e que acreditamos ser fundamental. A gente vive por esse sonho. E viva Fernando Barba!

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