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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Banheiro da transformação

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publicado em 28/05/2022 às 07h00
atualizado em 27/05/2022 às 16h23

A Índia tem produzido muitos e bons filmes. Um deles é Toilet – Ek Prem Khata  (2017), com o título inglês de Toilet – A love story. Apesar de nome que conduz o título e o leit motiv do filme, trata-se de uma comédia romântica perpassada por uma consciência social. Kesahv e Jaya  (foto) se apaixonam e se casam, mas na residência de Keshav não existe banheiro. Na vila, em que ambos residem, as mulheres costumam fazer as suas necessidades, literalmente, no mato, no lusco-fusco que precede o amanhecer, pois, por razões religiosas, não podem ter banheiro em casa, o que é considerado anti-higiênico, e não podem defecar diante da lua ou do sol. Não só se impõe às mulheres uma exposição à vergonha e ao perigo – picada de cobras, estupro, morte –, como também a fadiga de acordar muito cedo, caminhar longamente e, o pior, prender a vontade durante o dia.

Com a descoberta de Jaya, de que na casa de Keshav não tem banheiro, começa o conflito entre ela e o marido, que se estende, com o seu abandono do lar, voltando para a casa dos pais, a um conflito entre Keshav e o pai, com o conselho de anciãos, todos arraigados a uma tradição obsoleta punitiva das mulheres, e, por fim, um conflito com toda a nação, afogada em uma burocracia insana e labiríntica dos mil departamentos para acomodação de apaniguados, cuja função é apenas atrasar as decisões que beneficiam a população. Claro, não faltam slogans e programas inócuos como “Índia limpa!”. O filme me chamou a atenção, sobretudo, porque conhecemos esta situação de falatório improdutivo, para fazer espuma. Vamos para uma eleição em outubro e, quem quer que seja eleito, continuará o falatório sobre educação, sem um projeto de Estado para cuidar da situação definitivamente. Perderemos mais quatro anos.

Voltemos ao filme. A situação só muda, quando a atitude de Jaya de divorciar-se de Kashev vira notícia em rede nacional e começa a mobilizar as mulheres, que se levantam contra as tradições impostas pela religião e, neste aspecto, cegamente observadas pelos maridos, menos afetados pelos mesmos problemas.

Como sempre, a impressa se interessa pelo caso, menos pela grave situação anti-higiênica e degradante para as mulheres, do que pelo sensacionalismo e pelo que pode mobilizar a opinião pública, cataléptica diante da televisão, mas sem qualquer ação prática que se mova em direção a uma transformação. Lá como cá.

Quando os repórteres querem que o personagem Kasehv ponha a culpa da situação no governo, ele responde que essa prática é deles, que todos os dias fazem isto apenas para atrair e manipular a opinião pública. Mas ele não descarta a culpa do governo, que se arrasta pelos insondáveis caminhos da tecnoburocracia cara e ineficiente. Kasehv não exime sequer as mulheres, as mais atingidas, sobretudo, na saúde, e que se amedrontam e se resignam diante de uma situação que parece imutável. Todos, em suma, sobretudo os homens, temos culpa das situações que vivemos. Kashev diz que só nos movimentamos quando algo desconfortável nos atinge diretamente. É o seu caso. Tendo a mulher saído de casa e com o casamento ameaçado por um divórcio – um escândalo para a Índia e, principalmente, para a sua aldeia, que não passava por essa situação há 1700 anos! – Kashev se dispõe a enfrentar uma luta contra todos: pai, conselho de anciãos, aldeia, governo.

Para que o processo de saneamento da vila posso andar, pois a situação já se tornou incômoda para o primeiro-ministro indiano, ele ordena que se fechem de cadeado os banheiros dos órgãos públicos responsáveis pelo assunto. Só assim é que, atingidos diretamente, os tecnocratas, raça pior do que os burocratas, dão andamento à situação e o que estava programado para 11 meses começa de imediato.

Alguém poderá ver na medida do primeiro-ministro um absurdo e uma atitude ditatorial, algumas coisas, no entanto, num Estado letárgico, só funcionam com medidas drásticas. Mais acima, falamos de culpa, o termo, porém, não me agrada. A culpa não resolve nada e, em muitos casos, é estacionária. Na verdade, todos temos responsabilidades e devemos agir de acordo. O problema é que sempre estamos transferindo as responsabilidades para alguém, o que nos coloca num círculo vicioso que nunca vai para a frente. Deveria haver na nossa Constituição, já que temos uma tão detalhada, uma lei clara e não suscetível de interpretação que obrigasse o servidor público, de qualquer esfera, a manter os seus filhos na escola pública. Este poderia ser o nosso banheiro transformador.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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