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ENTREVISTA

“O contrário da vida não é a morte”, diz Cabelo Cobra Coral sobre CD

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publicado em 15/09/2020 às 11h36
atualizado em 15/09/2020 às 08h54

Kubitschek Pinheiro – MaisPB

Fotos: Arthur Bittar

“Luz com Trevas”, o primeiro disco de Cabelo Cobra Coral, nasceu com uma exposição, se transformou em um show e virou um álbum que já está nas plataformas digitais. O primeiro álbum solo de Cabelo chega ao mercado fonográfico em edição digital, com capa assinada pelo artista plástico Barrão. Já estão previstas edições do álbum Luz com trevas em CD e LP. Selo (Som Livre / MP,B Discos). “Luz com Trevas” é fruto de uma longa trajetória, seu resultado sonoro resultou do encontro e parceria com Kassin e Nave, dois produtores destacados no meio musical brasileiro.

Cabelo Cobra Coral faz arte para os cinco sentidos. Seu novo trabalho é a síntese sonora disso. A transformação permanente de papéis – de exposição a disco, de artista visual a músico – é sua marca autoral, refletida também nas faixas que inauguram novas dimensões de sua obra. Com mesmo nome do álbum que apresenta agora, a exposição, lançada em 2018 com curadoria de Lisette Lagnado, foi a manifestação fundamental para a existência deste primeiro disco solo, marcado pela sua diversidade de mídias, meios e mundos. O disco foi gravado por Mauro Araújo no estúdio Marini, mixado por Arthur Luna e masterizado por Ricardo Garcia.  O surgimento  musical de Cabelo passa pela banda Boato (Grupo de pop-rock formado na cidade do Rio de Janeiro em junho de 1989, integrado por Cabelo (voz), Léo Saad (guitarra), Dado (teclados), Edson Menezes (baixo), Fernando Jacutinga (bateria), Celão (percussão) e Justo (performance). A banda tinha diversos formatos.

Segundo o antropólogo paraibano Hermano Vianna, escritor e e crítico musical, (irmão do líder da banda Paralamas, Herbert Vianna) “Tudo EXUberant”, a faixa que abre e dá nome ao disco, “começa com um novo ponto para Exu, orixá que abre caminhos, coloca as diferenças em comunicação/confusão, destruindo maniqueismos e soluções simples. Portanto, esse é um disco que foi/é/será uma exposição, que era/é/será “cinema expandido”, e assim por diante, em expansão constante e explosiva – como ovos-bombas”.

A canção preferida de Hermano é Raio de Amor, “funk bem raiz (sim tudo pode virar raiz, a raiz não está no início: fundamentos a gente inventa) que, diante de uma Amazônia em chamas, chama xamã. O disco invoca portanto o encontro de orixás e xamãs, estratégia na qual a cultura brasileira deveria se especializar para se salvar. O orixá baixa para o mundo humano. O xamã sobe para o mundo espiritual. Em algum lugar, no meio do caminho bifurcado, dessa Stairway to Heaven tropical(ista), pode estar a solução”.

Em entrevista ao MaisPB, Cabelo  fala dessa gestação, da sua arte que se multiplica com o olhar  de quem gosta das sacadas contemporâneas, ressalta a importância dos orixás, cita a  Marielle Franco (assassinada em 14 de março de 2018) e muito mais.  Leia a entrevista e descubra uma proposta nova de fazer música, como uma crônica anunciada – das boas.

MaisPB – Cabelo, “Luz com Trevas”  (negativo ou positivo) é uma sida para a pandemia?

Cabelo – Creio que Luz com Trevas aponta para um caminho pelo qual podemos vislumbrar atravessar essa extrema adversidade que, com a pandemia, veio a ficar ainda mais escancarada. É a invocação da força e magia da poesia contra a vigência desta necropolítica. É uma convocação à união dos povos por seus direitos e sua liberdade. Um resgate da sabedoria dos nossos ancestrais nessa encruzilhada onde saberes e perspectivas de mundo se complementam. O encantamento como política para enfrentar os podres poderes desse sistema colonial.  Pois como bem dizem os pensadores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, o contrário da vida não é a morte, mas o desencante.

MaisPB – Esse nome do disco novo vem da sua exposição montada em 2018, com curadoria de Lisette Lagnado. Vamos falar sobre esse elo?

Cabelo – Luz com Trevas foi concebido para ser uma exposição, um show e um disco que, juntos, formam uma só obra. O dia da abertura da exposição foi o mesmo do ato interreligioso para  Marielle Franco e, devido à proximidade geográfica entre a Cinelândia e o Largo da Carioca, formou–se uma conexão, um caminho imantado, com pessoas que iam de um evento para o outro, tornando a noite ainda mais intensa e escancarando a relação do contexto da mostra com o grave estado em que o Rio de Janeiro e o Brasil se encontravam (e ainda se encontram). Participaram da mostra ogãs do Ilê Omi Oju Arô,  casa de candomblé fundada por Mãe Beata de Yemanjá, DJs, dançarinas e dançarinos do Grupo Suave, Ed du Corte, mestre barbeiro que deixa o corte ‘na régua’, o xamã Yanomami Davi Kopenawa, o Slam da Minas (coletivo de mulheres poetas), o músico e ativista Marcelo Yuka, o cineasta Emilio Domingos e o escritor Fred Coelho, entre outros. Trouxe para o espaço expositivo tudo que influencia meu processo criativo, a cultura oral das nossas heranças africanas e indígenas, misturadas à cultura pop e à cultura de rua que sempre vivenciei. O próprio título da mostra não é somente um nome, mas uma música, da qual fragmentos da letra inspiram a produção de objetos plásticos, como os Ovos-bomba, esculturas-pinturas que ao serem abertas revelam toda sorte de materiais, como urucum, cúrcuma, capas e máscaras, que quando vestidas fazem os participantes ativarem o espaço ao som da música. Ao conceber o show, instaurei no palco o clima da exposição, com tecidos, desenhos, vídeos e esculturas. O disco segue esse mesmo processo:  revelar esse universo através do ritmo e poesia das canções, um cinema sonoro expandido.

MaisPB – EXUberância faz uma louvação aos orixás?

Cabelo – EXUberância é uma saudação a Exu, senhor das encruzilhadas, portador do axé, orixá do movimento, princípio dinâmico e comunicativo entre os seres, as divindades e os ancestrais. Aquele que abre os caminhos e “coloca as coisas pra copular”, ligando mundos e promovendo encontros, como o dos tambores da Santeria Cubana, tocados por Leo Leobons e os sub graves eletrônicos dos produtores Kassin e Nave.

MaisPB  – a faixa  “Conheci Você” parece um funk e dá uma vontade enorme de dançar. Fale mais dessa canção?

Cabelo –  Sim, Conheci Você é um funk, 140 bpm, pra tocar nas pistas e descer até o chão. Uma homenagem a todos os mototaxistas, que celebra com humor o amor surgido numa corrida para um baile funk. Em tempos sombrios como estes, a festa e a celebração da vida são mais que necessárias. Afinal, como dizia Oswald de Andrade, a alegria é a prova dos nove.

MaisPB –  Tudo começou lá banda Boato, nos anos 90, mas de lá pra cá, Cabelo transcendeu?

Cabelo – A experiência com o Boato foi determinante para a continuidade do meu caminho artístico. Os shows da banda eram verdadeiras celebrações, performáticos, com muita anarquia, amor e humor. Atravessando esse tempo não creio que transcendi, mas amadureci, vivenciando muitas experiências entre o céu e o inferno, e que procuro apresentar agora em Luz com Trevas. Meu testemunho, como poeta, da densidade desse mundo em estamos imersos.

MaisPB -“Raio de Amor” mistura civilizações e até coisas absurdas. Como nasceu essa música tão atual para o mundo de hoje?

Cabelo –  Raio de Amor, parceria com Pedro Luís e Beto Valente, é inspirada no xamã e liderança Yanomami Davi Kopenawa. Dedico a música a ele e a todos os povos da floresta, cada vez mais ameaçados pela cobiça do agronegócio, dos madeireiros, garimpeiros e mineradores. Os direitos dos povos originários vêm sendo ultrajantemente violados pelo Estado, por este desgoverno, que ainda estimula e avaliza toda espécie de violência contra esses povos. Raio de Amor é um alerta contra esse verdadeiro filme de terror e um chamado para escutarmos a voz da selva e toda sua sabedoria ancestral. “Amazônia em chamas, chama xamã!”.

MaisPB – Abre o disco com EXUberãncia, que abre os caminhos para o seu som, né? Linda a voz de Nina Becker nessa faixa.

Cabelo – Exato. Tanto no Candomblé, quanto na Umbanda, abrem-se os trabalhos saudando Exu, que faz a comunicação entre o Ayê (o mundo físico) e o Orum (o mundo espiritual). Para abrir os caminhos para o som de Luz com Trevas, convoquei meu parceiro Leo Leobons (que divide a autoria da música comigo e Leo Saad). Leobons é um dos percussionistas mais respeitados no Brasil quando se trata de percussão afro-cubana. Um verdadeiro mestre. É ele quem inicia o ponto fazendo um rezo para Exu e tocando os batás. A voz feminina é da cantora Nina Becker, que também faz participação na faixa Je Vous Salue Marie.

MaisPB – Ladainha do Morro (poema de Gerardo Mello Mourão), tem um barulhinho sonoro genial no início, Vamos falar dessa canção que é uma porrada politica? Como resolveu gravar esse poema?

Cabelo – Ladainha do Morto é um longo poema que descreve as mortes de personagens históricos e anônimos de todos os tempos. Era ainda jovem quando conheci Gerardo Mello Mourão, pai do meu amigo Tunga, e adorava sentar à mesa e ouvi-lo falar. Grande poeta, fonte de tanto saber e sabedoria. Em 1997 ele lançou um de seus últimos livros, Canon e Fuga, no qual havia esse poema. Desde a primeira vez que o li, já senti que dali sairia uma parceria em forma de rap: ritmo e poesia.

MaisPB – Sensacional a faixa “A Perna da Boneca”, lembra  as coisas dos Novos Baianos?

Cabelo – A Perna da Boneca é um passeio pelas ruas e quebradas do Rio, acompanhando as aventuras e desventuras de uma criança de rua, seus pequenos delitos, seus prazeres e seus encantos…

MaisPB- “Je Vous Salue Marie”, é uma canção triste, mas é linda aqui ou em Cafarnaum, não é?

Cabelo – Je vous Salue Marie é uma viagem lírica por tempos e lugares distintos, desde a bíblica cidade de Cafarnaum, à beira do Mar da Galiléia, onde Jesus fez seus primeiros milagres, passando pela prostituição na Praça do Lido, em Copacabana, com referências à poesia de Dante, Jorge de Lima, Manoel de Barros, Godard e até ao menino da porteira da música do sertanejo, Sérgio Reis.

MaisPB – Quem é o “Vovô que vai voltar”? É um samba? Demais… fale aí?

Cabelo – O disco se encerra com Vovô Vai Voltar, uma promessa de volta, homenagem aos nossos antepassados, um samba bem humorado que fala de um vovô malandro, prestes a baixar em algum terreiro, pra conversar, comungar dos prazeres terrenos e trazer notícias do mundo de lá. Foi inspirada um tanto no avô do meu amigo Celão, e um tanto no meu avô Antonio Caxiado , que curtia uma cachacinha e um carteado!

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