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Jornalista desde 2007 pela UFPB. Filho de Marizópolis, Sertão da Paraíba. Colunista, apresentador de rádio e TV. Contato com a Coluna: [email protected]

Herla

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publicado em 27/11/2014 às 16h29

Mãos dadas, respiração ofegante e um convite: “Vamos pular juntos, papai”! O pai, cheio de si, vê no chamado algo trivial, desimportante. Responde afirmativamente, afinal fora ele mesmo quem acabara de incentivá-la agora há pouco a tomar coragem de se jogar na piscina e mergulhar.

Fez mais. Ficou embaixo, dentro da água, esperando que ela vencesse medo e aparente timidez. Pensou consigo mesmo. Frágil e insegura, a menina precisaria do estímulo de alguém que lhe inspirasse a superar o desafio e se igualar a todas as outras saltitantes e alegres crianças em pleno frisson na piscina.

Com a boca trêmula, de um receio agravado pelo frio daquele dia chuvoso e nublado, ela suspirava rápido e procurava se concentrar. Tentava, dava pequenos passos à frente, mas recuava. Vacilante, sorria para esconder o pavor do desconhecido. De braços abertos, o pai chamava pela sua ‘pequena’ e a encorajava. Era a forma de fazê-la superar o frio na espinha e os olhares ao redor.

Olhos fitados um no outro. De cima, a apreensão. De baixo, um ar de superioridade e encorajamento. Ao perceber o impasse, ele foi até ela. E disse: “Não tenha medo. Quando você cair, eu não te deixo afundar e te levanto. Mantenha só o nariz tapado para não entrar água”. Ela se sentiu mais protegida.

Dessa vez, respirou mais fundo. Distância da margem e lá se foi de vista fechada. Em segundos, estava no fundo da piscina. O pai, como prometera, abraçou-lhe e a levantou rapidamente. Providências que não impediram da ingestão indesejada.

Pensou que ela choraria, que o imprevisto lhe fizesse sentir agonia e imediatamente deixasse a piscina. Para surpresa, um grande sorriso, entrecortado, de balbucios de comemoração. “Vou de novo, papai”! Ele ficou no mesmo lugar e assistiu a cena se repetir diversas vezes.

O coração se alegrou. Pensou: ajudou a filha a vencer um grande dilema. Sua distância circunstancial– provocada por um divórcio – não fora suficiente para quebrar os laços de confiança. Alívio. O dia brilhou para ele, mesmo entre nuvens e garoa. Um filme atravessou sua cabeça. Lembrou do dia nascimento, da primeira vez que a deixou na creche sozinha, dos temores do relativo afastamento, compensado com a rotina diária deixá-la com o irmão na escola e amenizado com os fins de semana inteiro junto. Olhava agora para ela confortado. Já não era mais tão frágil assim, seus desafios e barreiras. A simples decisão de se jogar na água continha duas preciosas informações: diferente do que pensara, ela era corajosa. E segundo: via nele um porto seguro.

Enquanto isso, ela se esbaldava entre outros coleguinhas do prédio pouco frequentado. Nenhum, do seu círculo de amizade. Conhecidos mesmo ali, somente o pai, o irmão – entretido na piscina menor – e a tia – filha temporã da avó e mais nova três anos do que a sobrinha – uma atipicidade de chamar a atenção.

Mais livre e solta do que nunca, a menina nem ligava mais pro medo. A cada novo mergulho, acompanhado do abraço do pai que a submergia, livrando-lhe de incômodos debaixo d’água, sorrisos e semblante de vitória. Já havia vencido o “inimigo”. Aí, veio a sugestão natural e despretensiosa. “Vamos pular juntos, papai”?!
Um ar de riso como resposta e a cabeça gesticulando afirmativamente. O corpo dizia uma coisa, a mente outra bem diferente. Lentamente, ele sobe a escada, sai da piscina e vai ao encontro. Ela ainda sob o efeito de intensa adrenalina provocada pelos seguidos mergulhos e êxtase pela superação.

Por um momento, a sensação foi de que o mundo parou. Mãos dadas e o estímulo. “Segura a minha mão e não solta”, apelou a filha. “Tá certo, eu não vou soltar”, respondeu, sem estar realmente seguro do que acabara de prometer. Na verdade, ele não sabia se pularia.

Um estranho e repentino medo veio à tona. Quem incentivara há minutos com autoridade, agora estava inerte. Ridiculamente paralisado e sorrindo para disfarçar a vergonha. A única segurança era a mão da filha apertando. Como explicar a falta de coragem para tão simples iniciativa?

Ensaiou uma, duas, três, quatro,… Muitas vezes. O que parecia bobo, era enorme obstáculo. Ali, na beira da piscina, rendido pelo pavor de seguir poucos passos adiante e se deixar cair. Sabia, perfeitamente, que nenhum mal lhe aconteceria. Era rasa, jamais se afogaria. O pulo da margem para água, sem riscos de machucado.
E por que lhe faltavam forças para algo tão trivial? Era a pergunta que fazia a si próprio sem encontrar respostas. Um turbilhão invadiu seus pensamentos. Sua mente ficava ainda mais confusa. Só assimilava as frases da filha que soavam lentamente aos seus ouvidos, quase soletrados.

“Eu vou com você, papai”, disse-lhe, percebendo que estava diante de um homem em cuja testa poderia ser facilmente lida há quilômetros de distância a palavra pa-vor. Era seu pai, aquele que pronunciara palavras de força e lhe garantiu integridade na hora do pulo, quem agora tremia nas bases.

A impressão de estar cercado de olhares. Todos deviam estar rindo. Filha e pai ali tentando a “façanha” de pular juntos na piscina. Tudo só aumentava o suor de constrangimento. Não era possível que estivesse exposto àquela situação. E o pior: rendido, vencido e sem energia para colocá-la no seu devido lugar.

Ela já havia entendido tudo. Renovava, discretamente, o incentivo, num tom que ninguém mais ouvisse. Era só um passo que separava-o, do medo ao triunfo. Só um passo. Nada mais. Mas a lâmina de menos de um metro e quarenta amedrontava como um profundo e perigoso mar.

“Vamos, papai”, encorajou, docemente, mais uma vez. “Vamos”, topou. Mãos dadas novamente. Apertaram firmes. Contaram até três, como fizeram em dezenas de outras frustradas tentativas, poucos passos, um pequeno impulso e permitiram os pés afundar. Postou a cabeça fora meio atordoado.

Na superfície, encontrou o olhar e o sorriso dela. Os dois se abraçaram, entendendo, como ninguém à volta, o significado daquele passo. Tinham vencido bem mais que o medo do pulo na piscina. Tomados pela emoção, repetiram exaustivas vezes. Ele era eu. Ela, minha filha, Herla, de dez anos, que, apesar de tudo, ainda deixou que eu saísse da piscina como seu grande herói. Coisas que só o amor explica.
 

*Reprodução do Correio da Paraíba (09.11.2014 – domingo).

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