João Pessoa, 29 de agosto de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
“E Jesus, respondendo, disse-lhes: Acautelai-vos, que ninguém vos engane;
Porque muitos virão em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo; e enganarão a muitos”.
Mateus 24:4,5
Hilário Fobias e Graça Fobias eram gêmeos e nutriram um ódio entre eles do início ao fim de suas vidas. Não há confirmação quanto ao fato, mas amigos de um, detratores de outro, juravam de pés juntos e mãos postadas no peito que as brigas entre os irmãos começaram ainda na barriga da mãe, que não resistiu e morreu no parto. Triste início de vida para ambos, não só por este trágico fato, mas também porque não conheceriam o pai, desaparecido desde que soube das desconfianças de vizinhos de que havia sido ele o responsável pelo estupro na calada da noite da graciosa menina órfã de 16 anos que viria a engravidar de duas crianças e morreria sem pegá-las no colo para amamentá-las. Esta história ouvi repetidas vezes, das mais variadas formas, contadas e cantadas por cordelistas, repentistas, cegos violeiros e poetas de diversos segmentos nas minhas andanças por este vasto, belo e maltratado país.
Como ninguém, nem a própria menina, pôde ver quem a violentara, pois fora vendada e amordaçada enquanto dormia sozinha na casa que herdara dos saudosos avós, alguns fervorosos da fé tentaram em vão propagar que ela havia sido engravidada pelo Espírito Santo. O padre local logo desfez o boato, com dois sermões na missa e uns safanões sem testemunhas no fundo da igreja.
Quem criou os gêmeos foi um tio, irmão do pai foragido. Severo Antero Fobias lhes deu o sobrenome e as surras por todo e qualquer motivo, principalmente pelas desavenças constantes entre eles. Viviam separados até dentro de casa, porque juntos não conseguiam brincar dois minutos sem se engalfinharem. Hilário, naturalmente, como tinha mais força física, batia mais que apanhava. Porém, não deixava de levar seus arranhões e até um tabefe monumental certa vez na praça principal da cidade em que viviam. Mas isso já quando adolescentes.
Graça tinha também suas artimanhas para ludibriar o irmão e pegá-lo, como se diz, de calças curtas. Quando completou 15 anos, em vez de valsar, debutou fugindo de casa. Hilário ficou, fincou os pés, criou raízes, sem deixar de acompanhar um dia sequer o tio, que para ele era um pai ao mesmo tempo protetor e repressor, na seita que Severo fundara nos fundos da casa em que moravam, para descontentamento do pároco municipal. Desde criança, quando aprendeu a ler, com o próprio tio sob a lei da palmatória, leu e releu aquele livro sagrado que Severo lhe deu. Aquilo que foi benção para Hilário, foi revolta para Graça.
Antes mesmo de fugir, a irmã Fobias já havia rasgado e queimado o livro sem que o irmão e o tio soubessem. Como ela não frequentava a seita, pelo contrário, blasfemava às escondidas contra ela o tempo todo, não se deram conta ou não lhe deram importância. Graça fugiu de casa, mas não foi muito longe. Apenas migrou para o distrito do município em que nascera, onde sempre recebia a contragosto notícias dos parentes. E jurava ódio eterno ao irmão e ao tio.
Líder espiritual de metade da população da cidade, Severo preparava Hilário para o suceder, não só nas pregações pseudo-religiosas como nos discursos políticos, e cumprir o planejamento a longo prazo de conquistar corações e mentes de toda população local. E assim foi seguindo o rumo da prosa – e dos sermões. Sem força para convencer seus adeptos, o padre foi perdendo fiéis, que pouco a pouco se debandaram para a igreja do Severo. E na cidade, com o tempo, passou a ser Deus no Céu e Hilário na Terra. Severo vibrava com os discursos, digamos, veementes e vociferantes, do sobrinho, mas faleceria sem ver seu pupilo eleito prefeito.
Graça ainda tentou a todo custo fazer campanha contra, entretanto só conseguiu pouco menos de 20% dos votos para sua paixão, Salete Stasi, a SS, oficialmente amiga de mesma casa, pois os relacionamentos homossexuais já eram proibidos naquelas terras antes mesmo de Hilário se tornar prefeito. Com ele no poder, as “bruxas” e todos os “desvirtuados” seriam perseguidos, apreendidos e confinados num spa de recuperação fundado pela igreja do Severo. Com o poder de sua astúcia, Graça e sua mulher escapavam do spa por habilmente evitarem as provas que as condenariam.
Enquanto o pastor Hilário perseguia os infiéis, Graça bolava planos para sabotar a seita que agora pertencia ao irmão gêmeo e criava com seu pequeno grupo de seguidoras e seguidores formas de prejudicar de todas as maneiras os fiéis da seita do Severo. Com todo o poder nas mãos, Hilário e seus fiéis expulsaram o padre e os poucos que ainda o apoiavam e tomaram o prédio da antiga igreja da praça. Fez ali o seu templo para alegria de quase toda a população da cidade e seu distrito. A festa regada a guaraná e bolo durou todo um domingo qualquer de um ano qualquer.
E terminaria em felicidade para aqueles, se Graça e cúmplices não armassem uma bomba na entrada da igreja. A explosão quase ao fim da festa feriu uns cem, por sorte não matou ninguém, o que decepcionou profundamente a irmã Fobias e suas partidárias e seus partidários. Então, Graça mais uma vez blasfemou, odiou o irmão, as seis mulheres dele e os 13 filhos que puseram no mundo, fora os outros 17 adotados para multiplicar o rebanho fiel e toda aquela gente que dava a vida e a morte por ele.
Hilário foi reeleito com facilidade para mais quatro anos no poder e mandou a polícia prender Graça e sua turma de arruaceiros do distrito. Os policiais foram recebidos à bala e com bala e bombas reagiram. Virou guerra. Após um mês de luta, foram quase todos detidos do lado graciano, ou melhor, graciane, na linguagem neutra que Graça instituiu sem permitir objeções. Morreram dez rebeldes, quem não foi por tiro, foi na degola, e dois policiais, torturados e esquartejados.
Graça, acompanhada de mais cinco gracianes, conseguiram fugir e desta vez ela foi para bem longe. O mais distante possível “daquele desgraçado e seus fanáticos seguidores”, como bradava aos céus e aos infernos, babando de ódio, a irmã Fobias. Deixou para trás, sem uma lágrima sequer, o passado de guerras com o irmão e de paixão por SS, que depois de matar e esquartejar um dos policiais, foi estuprada e morta. Assentada na nova cidade, pequena como a que nasceu, Graça passou a reunir gente em sua casa já com planos de ganhar popularidade e se eleger vereadora, futuramente prefeita. Antes disso, porém, como planejamento de curto prazo, fundou a Congregação Ateísta Graciane, que daria origem ao PG, Partido Graciane, que num futuro – não muito longínquo de todo este episódio – faria ferrenha oposição ao PSS, Partido da Seita Severo, em todo território nacional.
Foi desta forma que se originaram as batalhas intermináveis entre severistas e gracianes. Há gerações e gerações, os fiéis seguidores dos irmãos Fobias vêm brigando fervorosamente pelo poder. Em nome de Deus e do diabo, sem saberem verdadeiramente quem é quem.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.
Pois sim.
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BOLETIM DA REDAÇÃO - 31/10/2024