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Hildegarda: ícone de vanguarda da Idade Média

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publicado em 30/10/2023 ás 07h00
atualizado em 29/10/2023 ás 18h24

No ano de 2001, eu vi pela primeira vez o nome “Hildegard von Bingen”. Ele estava na dedicatória de um livro contemporâneo que analisa e procura interpretar um manuscrito copta encontrado no Egito por volta do ano de 1.773, de autoria desconhecida, chamado de “O Livro do Salvador” ou “A Doutrina Secreta do Salvador”, intitulado no mundo hermético e nas escolas de mistério como a “Pistis Sophia”. No início daquele livro estava escrito que era dedicado a pessoas santas como ela.

Resolvi pesquisar a respeito dela e me deparei com um mundo à parte, completo de significado, encantamento, fortes desafios e aventuras inéditas para uma mulher na época da Baixa Idade Média. Ela nasceu na Renânia, Alemanha Ocidental, cidade às margens do médio e baixo Reno, quando as Cruzadas já haviam se iniciado.

Hildegard von Bingen, não é apenas um nome feminino, mas, uma mulher extraordinária que nasceu no ano de 1.098 (Século XI), e, veio a óbito em 1.179 (Século XII), aos 81 anos. Foi uma monja beneditina e abadessa, a primeira a fundar um convento independente do controle e protetorado direto dos padres.

Ela rompeu todos os obstáculos possíveis a uma mulher da sua época, e, inclusive foi exemplo de vanguarda em todos os seus atos: como mulher, monja, abadessa, discípula, terapeuta holística (Nota 1), professora, visionária, escritora e palestrante.

Em uma época quando o patriarcado imperava ferrenhamente, sem que a mulher tivesse vez e voz, ela era consultada por reis, sacerdotes e instrutores, não apenas por causa de suas premonições (visões e predições), como também em assuntos relacionados aos ensinamentos religiosos, saúde e música.

Ao mesmo tempo, ela foi escritora, musicista cujas composições até hoje são gravadas por grupos de música medieval e em igrejas alemãs, inclusive em outros países da Europa.

Ela desenvolveu vários tratamentos administrados em pacientes que a sua abadia recebia para cuidar e foi precursora de inúmeros procedimentos que atualmente são denominados de terapias integrativas e complementares, porque promovem a saúde de modo integral e visam ao bem-estar do enfermo.

Ela lidava com musicoterapia que consiste em usar os instrumentos musicais, os sons, as canções, ou seja, o ritmo e a vibração, para auxiliar nos tratamentos de diversas enfermidades físicas e mentais, assim como para aliviar vários sintomas de doenças somatizadas no corpo.

Empregava a cristaloterapia, com diversos tipos de cristais para cura de distúrbios físicos e emocionais. Desenvolveu elixires, unguentos e cremes, tendo por base a fitoterapia que é o uso medicinal de plantas. Anotou propriedades de vegetais, ervas e flores, ao tempo em que tabulou os resultados em sua aplicação nos tratamentos que empreendeu. Seus apontamentos, fruto da observação da natureza e das plantas, tinham objetividade e especificação científica, que eram desconhecidas até aquela época, principalmente aqueles relacionados às plantas medicinais, cuja compilação na forma de tratados guardavam o enfoque curativo e possuíam uma proposta de métodos de tratamento para várias doenças. Esses manuscritos resultaram em publicação autorizada pelo Papa, à época.

Ela desenvolveu um tipo de dieta, que depois foi denominada de “jejum de Santa Hildegarda”, que era à base de sopa de espelta (trigo-vermelho) e legumes, usando como temperos o tomilho, a camomila e a galanga (colônia-de-java ou gengibre tailandês) para tomar ao meio-dia, e, com chás medicinais e sucos naturais durante a manhã e à noite, que era uma espécie de moderação alimentar de caráter e utilidade terapêutica. Vários de seus medicamentos, atualmente, são conhecidos como “Farmácia Hildegardianna”, alguns com marcas registradas.

Sua vida não foi fácil e várias vezes foi acusada pela inquisição, especialmente, por ser uma mulher que empregava métodos desconhecidos para uma vasta maioria da humanidade.

Canonizada no ano de 1.584 pelo Papa Gregório XIII, definida pelo Beato João Paulo II por ocasião do seu 800º aniversário de morte, no ano de 1.979, como a “Luz do seu povo e do seu tempo”, e, proclamada a “Doutora da Igreja” no ano de 2.012 pelo então Papa Bento XVI, a Santa tem como seu dia de comemoração a data de 17 de setembro.

Durante a Pandemia, eu comprei o livro assinado por ela, intitulado “Scivias – Scito vias Domini” (Nota 2), que é um tratado que significa “Conheça os Caminhos do Senhor”. O referido livro soma 752 páginas. Para minha surpresa, no início de 2023, ao adquirir o livro “A criação da Consciência Feminista – a luta de 1.200 anos das mulheres para libertar suas mentes do pensamento patriarcal”, de autoria de Gerda Lerner, Bingen é o primeiro nome proeminente nele. O livro enfatiza o papel de Hildegard von Bingen (Hildegarda), com espaço importante da obra dedicado à abadessa, onde se ressalta que “… ela deixou uma vasta obra original, escritos que foram influentes em sua vida e durante séculos após a sua morte. Ela foi pioneira em combinar espiritualidade, autoridade moral e ativismo público para criar o que se tornaria um novo papel público para as mulheres.” (Nota 3).

Há também um filme que demonstra alguns aspectos da vida desta inigualável monja beneditina, intitulado “Vision” (Nota 4), lançado em 24/09/2009 na Alemanha, em sua homenagem.

Que venhamos a dar toda a honra à Hildegard von Bingen ou Hildegarda de Bingen (Santa Hildegarda).

Nota 1:

Holístico: a palavra deriva do grego “holo” e que pode significar completo, inteiro, integral.

Nota 2:

Hildegarda, Santa, 1098-1179. Scivias: (Scito vias Domini): conhece os caminhos do senhor/Santa Hildegarda; tradução: Paulo Ferreira Valério. – São Paulo: Paulus, 2015. – (Coleção amantes do mistério). Título original: Scivias (Scito vias Domini).

Nota 3:

Lerner, Gerda. 1920-2013. A criação da consciência feminista: a luta de 1.200 anos das mulheres para libertar suas mentes do pensamento patriarcal/Gerda Lerner; tradução Luiza Sellera. – São Paulo: Editora Cultrix, 2022. Título original: The creation of feminist consciousness.

Nota 4:

Nome original do filme alemão: “Vision: Aus Dem Leben Hildegard Von Bingen” (Visão: Da vida de Hildegard Von Bingen).

“A maturidade feminina produz uma pessoa robusta e altiva. Ela é aquela que sabe o que quer, que é decidida, gregária e profunda. (…) Uma mulher amadurecida sabe que sua essência é muito mais importante, que vale o que aprendeu e acumulou de conhecimento até então, e, sua ênfase recairá na beleza de sua alma, que se expressa em seus pensamentos, atitudes e ações, e principalmente, no brilho de um olhar limpo e luminoso.” Ribeiro, Mirtzi Lima. Pensamentos noturnos: mosaico de emoções e razões/Mirtzi Lima Ribeiro. – João Pessoa: Ideia, 2023. 457 p.