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O poeta e os espantalhos urbanos

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publicado em 11/04/2022 às 07h00
atualizado em 11/04/2022 às 05h57

O poeta não visitava a sua amada cidade natal há anos. As saudades apertavam mais porque as notícias eram poucas. No entanto, as lembranças ainda estavam vivas em sua memória. Da selvagem beleza das praias, morros e matas, da provinciana beleza de suas meninas, da lealdade canina dos amigos de escola, da infância nas ruas tranquilas – que hoje, sabia bem, já não eram mais como antigamente –, das farras, das festas, enfim de tudo que cercava seu mundo passado. Tinha registrado em todos os sentidos a vida que levara: o cheiro da mata e da maresia ainda roçava seu nariz, os grãos de areia escorriam por entre seus dedos, o som das ondas batiam, imensas pedras banhavam-se no mar, o primeiro beijo ainda degustava.

A saudade se tornou uma imensidão apertada em seu peito. Assim, decidiu voltar para passar uns dias na sua cidade e escrever uma poesia em homenagem à amada. Não que jamais tivesse escrito versos sobre ela, mas é que, em todas, a cidade era o pano de fundo e a maior parte feita das lembranças. Queria voltar para novamente cheirá-la, percorrê-la, pegá-la, ouvi-la, vê-la e degustá-la. As informações que obteve eram de uma cidade mais moderna, com alguns problemas sim – quais não as têm? –, porém com reformas que valorizavam suas belezas naturais. O poeta não parava de sonhar durante a viagem com a sua chegada. Logicamente, por tanta expectativa gerada, ela foi mais lenta do que o normal.

O projeto era passear por todos os lugares que já conhecia e outros por onde nunca havia passado. O poeta queria sentir tudo à sua volta e fazer as anotações necessárias para a poesia da cidade amada. Queria até pesquisar a origem dos nomes de suas ruas. Pretendia também conversar com muitas pessoas, velhos, crianças, meninos, meninas, adultos, enfim, com o máximo de cidadãos e os que trocaram a capital para obterem mais tranquilidade ou porque a acham ainda mais bonita.

Mal chegou, o poeta, mochila às costas, passou a caminhar pelas ruas da sua cidade reconhecendo lugares, notando algumas diferenças. Ele passeava ainda deslumbrado com tudo pelas ruas do centro, quando percebeu que algo o incomodava profundamente: os milhões de galhardetes e cartazes grandes, pequenos, médios e imensos com propaganda política agredindo tudo, até o que não tem beleza, mas jamais é chamado de feio: o poste. Para ele, aquela série interminável de fotos sorridentes com nomes, letras e números pendurados nos postes não passavam de espantalhos de plástico e papel. Sua sensibilidade desta vez acabou por lhe trazer vertigens. Parou num bar e pediu um copo d’água para se recuperar. Pensava: “A democracia é uma festa que foi proibida por tanto tempo, que acabou se tornando desorganizada pela falta de hábito. Isso passa. É melhor eu esquecer isso e partir em frente, porque não há cidade mais bela no mundo”.

Agradeceu a gentileza do dono do bar, saiu e nem bem se recuperara da vertigem pelas visões dos espantalhos urbanos sobrepostos, duas kombis velhas passaram gritando pelos alto-falantes o nome de candidatos rivais e seus auto-elogios, como se discutissem asperamente no meio do asfalto. Os motoristas sorriam, mas parecia briga séria, tal era a altura e a péssima qualidade do som. Cada kombi defendia seu candidato com paródias infames de músicas de sucesso não menos infames. O poeta pensou: “Perfuração de tímpano não deve ser coisa muito pior que isso”. Entretanto, relevou mais uma vez, afinal “a democracia é uma festa. Barulhenta e desorganizada, mas é uma festa”.

Pensava em seguir beirando a água, mas antes de chegar ao destino traçado teve de desviar de uma fileira interminável de camelôs com suas bugigangas brasileiras e paraguaias, tomou umas cinco braçadas, e escapou de umas dez, de gente distribuindo santinhos políticos – que de santos nada têm – e propagandas de dinheiro fácil e de planos de saúde – cada vez mais íntimos do comércio ambulante.

Sentiu-se recompensado depois de tanta luta com a vista. Chegou a parar para admirar a imensa superfície azul escarpada, pontilhada de dourado pelo belo sol de inverno. Porém, seu sossego durou pouco. Logo chegou um grupo de meninas uniformizadas dos pés à cabeça distribuindo – ou melhor jogando para o alto – santinhos de mais um candidato do povo – nesta época todos são do povo. Ao mesmo tempo, novo carro de som, desta vez um fuscão azul – o poeta nem se lembrava mais da existência dos fuscas – cantava aos berros vários motivos para que fulano de tal recebesse um voto de confiança.

O poeta se afastou e foi seguindo pelas ruas da cidade, percebeu maravilhado a variedade de beldades desfilando pelas ruas, visitou tudo o que programara. Depois de conhecer o mais novo museu “que nem precisaria conter qualquer obra de arte, pois é a própria”, passear por uma de suas praias mais centrais, pegou um ônibus para rever as mais longínqüas. Por todos os lugares por onde passou sentiu um misto de encantamento e decepção, pois além dos espantalhos que continuavam rodando em sua cabeça, não se livrava dos políticos nem quando olhava para o céu, pois lá passava um avião com uma imensa faixa. Acabou chegando à conclusão que a democracia é uma festa só frequentada por penetras. Resolveu então ir embora logo e só retornar quando não houvesse eleições.

Visite o blog Eduardo Lamas: www.eduardolamas.blogspot.com
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