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no Líbano

Nos campos de refugiados, jovens sírias são forçadas a se casar

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publicado em 17/12/2016 às 16h19

Com seu corpo miúdo e sorriso tímido que não sai do seu rosto, Manar ainda parece uma criança. A jovem síria está sentada atrás de outras mulheres que, embaixo de um toldo de papelão, em um acampamento do vale do Beqaa, lamentam seu cotidiano penoso de refugiadas. Assim como elas, Manar, 16, é casada.

Dessas núpcias celebradas na primavera, no Líbano, com um primo cinco anos mais velho, refugiado em Saadnayel, ela não escolheu nada. A união foi decidida “pelos homens da família”, enquanto a jovem estava na Síria. Já praticados antes da revolta de 2011 e da guerra que se seguiu, os casamentos de menores de idade aumentaram desde então na Síria e entre as comunidades exiladas nos países vizinhos, como o Líbano. Algumas delas se casam aos 13 anos de idade.

Originária da zona rural de Aleppo, Manar não havia pensado em fugir de sua região por causa das bombas. Ela tomou o caminho “longo e perigoso” do norte da Síria até a fronteira libanesa, atravessada clandestinamente, “para esse casamento”. Depois que chegou ao acampamento informal de Mamdouh, tudo andou rápido. Sua mãe, que foi junto com ela, lhe enumerou “seus deveres de esposa, e falou sobre a noite de núpcias”. Depois houve a festa de família em torno de Manar de vestido branco, entre as tendas.

Trauma

Com a cabeça coberta de um véu leve, a adolescente se expressa com pudor. Ela tem essa vida de casal, à qual ela precisa se adaptar. E também ao isolamento, uma vez que os contatos com sua mãe, que voltou para a Síria após o casamento, são esporádicos.

E o dia a dia no Líbano é diferente do que ela havia imaginado: no miserável acampamento onde às vezes passam ratos pelas ruas, as pessoas lutam para pagar as contas.

Sentada ao seu lado, sua prima e agora cunhada Jawhar, também de 16 anos, ri para esconder sua vergonha: através de sua túnica rosa decorada com brilhantes, é possível ver sua barriga. Ela está grávida de sete meses. Casada com um refugiado do acampamento escolhido por sua família, a jovem afirma que ela está “feliz” com essa gravidez, pois “gosta de crianças”. No entanto, o casamento foi um trauma. “Jawhar chorava, ela queria voltar a viver com seus pais, conosco”, se lembra Fatima, sua irmã mais velha e confidente. “Eu não sabia nada de relações sexuais”, comenta a futura mamãe.

Não existem números precisos sobre essas uniões envolvendo jovens sírias, a maior parte delas vindas de um meio rural de pouca instrução. Mas o aumento delas preocupa os setores de proteção à infância. Algumas associações consideram o termo “casamento forçado” mais apropriado, pois a maioria das uniões precoces são impostas às menores de idade. “Consideramos que se trata de um abuso sexual”, acrescenta Mira Faddoul, encarregada do programa de proteção infantil em Kafa, uma ONG que combate a violência contra a mulher.

Essa prática antiga muitas vezes é justificada pela tradição. Mas o aumento de sua frequência entre os refugiados no Líbano também seria devido à vontade de proteger as jovens de um estupro ou de relações fora do casamento, e à pobreza na qual vivem as famílias. “Não damos nossas filhas para nos livrar delas”, reage bruscamente Fatima, 27. “Em nossa região de origem, as mulheres se casam entre os 15 e os 20 anos, depois disso elas são consideradas velhas demais”. Na Síria, a idade legal do casamento é de 17 anos para as meninas, mas pode baixar para 13 anos com uma autorização judicial.

Fatima não tem uma opinião formada sobre o assunto: “Estou contente por só ter me casado aos 20 anos. Eu era mais madura”. Mas a jovem, que não tem filhos, comemora a gravidez de Jawhar, apesar de sua idade. “Eu vivia com medo de ser repudiada, pois não engravidava. Até o dia em que exames mostraram que os problemas de fertilidade vinham do meu marido”, ela conta. “Jawhar não sofrerá o mesmo calvário.” Fatima sonha em recorrer à reprodução assistida. Por não poderem impedir os casamentos precoces, que também afetam jovens libanesas, associações como a Kafa lembram “que uma criança não pode cuidar de outra criança.” Nos acampamentos informais, suas equipes organizam oficinas, onde se fala sobre o isolamento e a violência doméstica aos quais as adolescentes estão mais expostas, e sobre o risco de mortalidade mais elevado durante o parto.

“Conscientização”

“É preciso uma conscientização para que essa realidade mude. É preciso também que uma lei seja adotada no Líbano para que a idade legal do casamento seja estabelecida em 18 anos”, alega Mira Faddoul. Uma regulamentação como essa poderia também proteger as jovens sírias. Na terra do Cedro, a competência pelo estado civil é das autoridades religiosas, e o casamento de menores de 18 anos é consentido na maior parte das comunidades, muçulmanas ou cristãs.

Fatima e sua irmã mais velha Issara, irmãs de Jawhar e primas de Manar, acompanharam as sessões da Kafa. “Os coordenadores têm razão”, suspira Issara, 32 e mãe de seis filhos. “Mas é necessário tempo, e que os homens participem da mudança”. Ela, que se casou jovem, resiste para proteger sua filha mais velha, Rahaf, de 15 anos, dos pedidos insistentes de pretendentes. “Eu enfrento homens da família que querem se casar com ela”, ela afirma, fumando um cigarro. “Rahaf não repetirá aquilo que vivi. Ela só vai se casar depois dos 20 anos, com um homem capaz de lhe garantir uma vida tranquila.”

Um caminhão carregado de frutas e legumes para na entrada do acampamento. São 15h. As mulheres negociam os preços com o comerciante e se preparam para fazer o jantar, dividido com os homens que voltam das roças ou dos canteiros de obras. As jovens Jawhar e Manar também se dedicam às tarefas domésticas. As duas pararam de frequentar a escola em 2011, e não voltaram mais.

UOL

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