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Chico César quebra o silêncio de oito anos com disco inédito

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publicado em 02/06/2015 às 17h19
atualizado em 02/06/2015 às 14h21

Chico César saiu sem deixar recado. Instigado, foi logo ali passar primeiro seis meses de pernas pro ar na Praia do Seixas, em João Pessoa. Depois, a convite do governo, criou e assumiu a Secretaria de Cultura da Paraíba. Saboreou do bem e da angústia de se ter a caneta nas mãos para realizar sonhos e melhorar vidas até a página dois, até o Estado agir contra seus próprios representantes e dinamitar ideias com mau humor e burocracia. Chico andou por duas Paraíbas, a das sensações de infância e a real, do asfalto e da areia, até encontrar por elas Bárbara, uma paixão. Ao voltar a São Paulo, com oito anos sem lançar um disco de inéditas, é um homem que abraça o mundo em 14 canções.

Seu novo álbum, Estado de Poesia, tem teses e reflexões que, só a princípio, não dialogam entre si. “Ele vem reivindicar a liberdade do ato de fazer”, poetiza Chico, no final de uma tarde em sua agradável casa no bairro do Sumaré, em São Paulo. Ele naturalmente desenvolve a ideia bem mais, mas logo depois pula para outros motes. Seu disco pode ser visto como um LP de lados A e B. No A, músicas de dentro para fora, canções que fez em estado de paixão para Bárbara, como Caninana, Caracajus, Da Taça, Museu e Palavra Mágica. E, no B, o protesto mesmo travestido de festa que sempre o acompanhou e que agora ganha forma em músicas como Guru, Negão e No Sumaré.

De todas, apenas duas não são de sua autoria integral. Quero Viver veio de um poema inédito de Torquato Neto (tropicalista que se suicidou em 1972), transformado em frevo, e os Reis do Agronegócio, de versos extensos e divisão bobdyleana feitos com indignação e súplica por Carlos Rennó, faixa que só entrou no disco por força das redes sociais como bônus. Chico chegou a cantá-la no plenário da Câmara dos Deputados durante uma sessão para homenagear o Dia do Índio. Alguém ali deve ter se arrependido muito de chamá-lo ao ouvir o que tinha a dizer: “Vocês se elegem e legislam feito cínicos / Em causa própria ou de empresa coligada / O frigo, a múlti de transgene e agentes químicos / Que bancam cada deputado da bancada / Até comunista cai no lobby antiecológico / Do ruralista cujo clã é um grande clube / Inclui até quem é racista e homofóbico / Vocês abafam mas tá tudo no YouTube”.

As habilidades poéticas de Chico César o tornaram um manifestante preciso disfarçado de trovador ingênuo capaz de fazer dançar até o integrante da bancada ruralista que ele acusa de criminoso. Com exceção de Reis do Agronegócio, de sensação mais dramática, seu disco é para dançar e cantar, mesmo quando o assunto é o preconceito racial colocado no reggae Negão, com a voz dividida com Lazzo Matumbi. “Negam que aqui tem preto, negão / Negam que aqui tem preconceito de cor / Negam a negritude, essa negação / Nega, a atitude de um negro amor.”

Além de trazer Torquato, Chico lembra também de Santos Dumont com um frevo chamado Alberto, seu primeiro nome. Na conversa com a reportagem, ele explica que a ideia veio quando subia as escadas rolantes de um aeroporto em São Paulo. A homossexualidade do inventor, a repressão paterna e sua morte por suposto suicídio aos 59 anos, em 1932, são linhas de um mesmo drama, na decolagem de Chico César. “A criação do avião, para mim, foi a metáfora perfeita de seu desejo de voar, de se libertar. E isso vai se concretizar com sua morte, com seu suicídio. Ele foge do pai castrador para ir ao encontro ao outro pai.”

Indo e vindo de fora para dentro e vice-versa, lá aparece o compositor entregando os sentimentos a Bárbara logo no início. Mas também quando faz isso, ChicoCésar pode estar disfarçado. Caninana, a abertura, é um xote pesado, urbano, espaçoso, contagiante e pop. E essa última categoria não o amedronta. Chico não parece precisar de um acorde de quinta diminuta para acalmar seu ego. O que ele faz aqui é simples na estrutura e com um poder de comunicação poderoso, o que não parece tirar a legitimidade de sua arte.

Sua maior entrega a Bárbara, esta mais visível em letra e música, seja talvez em Caracajus, feita quando ele estava em Caracas e ela, em Aracaju. “A fruta em seus lábios, a alma saindo pela boca / os lábios densos a fruta calma / derramando em calda, a polpa.” Embora a canção um tanto aboleirada Da Taça seja outra a supostamente tirar suspiros da moça: “Da taça que você bebeu, bebi eu / Sozinho, que o vinho escorreu com gosto do seu batom, tão bom, bateu / A porta mais nem fui abrir, ninguém vem, suponho, é um sonho meu / E a ponta que você deixou, fumei, bateu”.

De volta ao exterior, vem então a real história de dois homens, um mendigo e um travesti, que dormiam na rua, mais precisamente em uma pequena praça no Sumaré, perto da casa de Chico, atrás da antiga MTV. A música é No Sumaré, um samba com atmosfera de Adoniran Barbosa e vocal dividido com Escurinho. “No Sumaré ali, na praça atrás da MTV, moravam dois mendigos, dois amigos, um deles travesti.”

Na história testemunhada por Chico, os moradores da praça cuidam do jardim, aparam a grama, “sem grana e com gana, só porque estavam a fim.” Um dia, “oh desgraça!”, os moradores da região nobre de São Paulo expulsam os dois. E Chico canta: “A burguesia não quer mais florzinha na praça. Para eles, flor é bom no cemitério da Doutor Arnaldo”. A praça hoje está lá, vazia. Ou quase. “E hoje, só resta a praça vazia, onde na noite fria o cachorro do rico faz pipi.” O conto fecha com um resumo ao sotaque dos sambas de despejo de Adoniran: “Os noiado fuma crack onde nóis puxava fumo”.

O mundo mais ingrato foi vivido por Chico César em sua fase de gestor público. Apesar de contar com apoio e popularidade, viveu dias de luta e viu o que, talvez, fosse melhor não ter visto. Mais do que a histórica falta de verbas para a pasta da Cultura, experimentou a sensação da impotência. “A administração é muito engessada. É como se o Estado estivesse estruturado para servir apenas a ele mesmo.” Qualquer tentativa de ousadia era imediatamente desencorajada pelas forças dos departamentos financeiro, jurídico, etc.

Chico se lembra de tentar dar visibilidade e apoio para um grupo musical do interior da Paraíba. Um talento que ele percebeu de longe. A primeira pergunta que ouviu em seu departamento, no entanto, quebrou-lhe as pernas. “Mas eles têm pelo menos três matérias publicadas em jornal?” Como um grupo sem nenhuma estrutura teria matérias falando sobre eles? O trabalho do poder público não seria justamente esse, dar visibilidade e chance a uma expressão legítima de seu Estado? As matérias de jornal não seriam consequência desse apoio? “Era como se não precisássemos estimular nada”, pensa Chico.
“Quando alguém tenta fechar uma porta, você precisa colocar o pé e não deixar que ela se feche. Aí, então, você empurra até que desistam de fechá-la. E assim vai abrindo os caminhos.”

Outro dia dos mais desanimados com os círculos que trilhava para tentar alguma saída, Chico olhou para sua equipe e propôs: “E se todos nós, eu e vocês, fôssemos para casa? Vamos ficar um mês em casa”. Ele não concretizou a própria ordem, mas fez alguns ali pensarem. Se fossem todos para casa, ninguém perceberia. “As pessoas existem (na administração pública) para passarem desapercebidas.”

Mesmo antes de viver a riqueza da experiência na Secretaria da Cultura, Chico teve sua imagem aliada ao protesto. Sua obra fala esse idioma desde Mama África, passando depois por Respeitem Meus Cabelos, Brancos. O lançamento de seu disco novo leva a uma outra constatação ao sair pelo Laboratório Fantasma, a gravadora e produtora dos irmãos Fióti e Emicida. Chico mesmo conta que ficou surpreso ao ouvir de Fióti sua admiração. E, agora, Estado de Poesia se torna o primeiro álbum de um artista de fora do movimento rap a integrar o casting de uma das economias criativas mais vitoriosas no meio musical.
Sinal do Cavalo de Troia que Chico leva consigo. Depois de dançar, seu fã começa a cantar. E percebe que aquilo que acaba de penetrar sua alma diz algo que também pode lavá-la.

Estadão

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