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Eu comi Tomie Ohtake

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publicado em 16/02/2015 às 12h14

É preciso sentir a dimensão de nossos desejos e ter o comedimento imprescindível para não ter mais do que aquilo que precisamos. Desejar o vinho que cabe em uma taça, por saber que – mais que isso – faz transbordar…

Esse comedimento vale para os prazeres hedônicos, palpáveis e degustáveis, mas também para as delícias transfilosofantes e para o tesão que sentimos por prazeres muitíssimo subjetivos.

Em uma manhã do final de maio de 2002, tive o prazer de conversar (longa e demoradamente) com a artista plástica japonesa Tomie Ohtake. Estava em João Pessoa como uma das ‘atrações’ do Festival Nacional de Arte (Fenart).

Durante a entrevista com a artista (que faleceu na última quinta-feira, dia 12, aos 101 anos de idade, após infarto em São Paulo), tentei tirar de Ohtake muito do que ela poderia dizer a respeito da arte contemporânea.

Tranquila e infalível, ela teimava em não se alongar nas respostas para as minhas perguntas e destacava trechos de sua vida simples.

Lembro de ter comparado a arte a um alimento da alma… Ohtake danou-se a falar de como era importante não desperdiçar alimentos, criticando quem deixava comida no prato, por exemplo.

E a partir desse exemplo, falou coisas lindas sobre consciência social, respeito e solidariedade. Falou-me sobre fome e de como era importante comer apenas o que a fome pedia…

Comi cada uma das frases de Tomie Ohtake. Degustei cada palavra. No encontro e reencontro dos molares, mastiguei vagarosamente. Engoli.

Tomie Ohtake, genial, com mãos em concha, mostrou-me que aquilo que não cabe em nossas necessidades não precisa estar em nós.

A arte e nossos desejos, a arte e nossas necessidades, a arte e o dinheiro, a arte e nossos sonhos não precisam transbordar… Basta que nos preencham…

Eu comi o que Tomie Ohtake deu a mim. Fartei-me. E percebi que a fome come na medida certa. Além disso, transborda. E o que transborda deixa de ser seu e passa a ser de outro… Não lhe cabe…

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