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Jornalista desde 2007 pela UFPB. Filho de Marizópolis, Sertão da Paraíba. Colunista, apresentador de rádio e TV. Contato com a Coluna: [email protected]

Mãe

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publicado em 30/04/2012 às 10h38

Eu nunca te chamei de vó. Nenhuma vez. Também pudera.
A senhora me teve em seus braços desde o natalício naquele 26 de
dezembro de 1983. De lá pra cá, tomastes a missão de auxiliadora
da tua filha na criação do primeiro rebento dela. Seu primeiro
neto.

Não sei se pelo tamanho da proximidade e freqüência da
presença ou por começar a ouvir, ainda engatinhando e todos os
dias, a minha te chamando de mãe. Mas a forma de tratar-te não
era apenas uma daquelas heranças cognitivas. Era assim que eu te
sentia no peito.

E foram tantos e tantos motivos para carregar-te com esse
sentimento filial no coração por essa vida afora. Vida que só tinha,
tem e terá sentido por tudo que a senhora plantou em terreno de
amor, luta e esperança. Um arado que germinou meu mundo de
ontem e de hoje.

Fostes uma lutadora. Tal qual a designação de Euclides da
Cunha, a senhora, dona Nuita, era antes de tudo uma fortaleza.
Força feminina com capacidade de morrer e renascer como a flor
no meio das catingas que te brotastes no Sítio Cabra Assada (São
João do Rio do Peixe).

Guardo bem um dos teus depoimentos. Os filhos, inclusive
a senhora, todos reunidos em casa esperando pela provisão.
O jantar saía tão logo o pai chegasse, depois de quilômetros de
caminhada a pé carregando nas costas um saco de batata-doce, o
prato do dia, todos os dias, perto da meia noite.

Veio a orfandade paterna. Cresceu, casou, fez descendência.
Separada. Nunca mais casou e nem quis eleger um padrasto para
os dois filhos. Tudo que aprendeu saiu das aulas improvisadas
nos sítios vizinhos. Tinha orgulho da caligrafia bonita e por isso
escrevia com todo gosto um bem desenhado Venância Francisca
de Jesus no papel.

Escrevestes nas linhas da singela vida um exemplo de
obstinação e perseverança. Trilhastes as capoeiras e estradas com
um balaio de ovos à venda. Sustentou os filhos. Deu dignidade.
A senhora nunca me disse, mas eu presumo quantas vezes fostes
discriminada pela condição de separada, sem pai e morando com
mãe e avó, a quem cuidou até os instantes finais.

Tenho vivo teu sorriso tão meigo. Tão simples. Simples
como eram todos os teus sonhos e anseios. Pensar grande era
acertar algum dia na TeleSena de Sílvio Santos. Para enricar? Não.
Só para ter a oportunidade de dá o que nunca pode presentear
todos os filhos. Era tanto desejo que a senhora, traída pelas vistas,
“acertava” muitas vezes até que me pedia pra conferir as dezenas…
Ríamos juntos dos seguidos erros.

Quantas vezes me peguei voando no pensamento de João
Pessoa até Marizópolis lembrando do nosso amor. Do prazer que
a senhora tinha de cozinhar pro seu “filho”. E como teus olhos
brilhavam ao perguntar e ouvir que o sabor era de um manjar.

Como não me emocionar e derramar meu pranto incontido
cada vez que lembro que beijavas a televisão como se tivesse a
me acariciar, suplantando a distância e matando saudade. Eu sei,
minha mãe, que chamavas vizinhos e tantos que passavam na rua
para mostrar teu filho, teu troféu.

Cada nova visita, choravas como na primeira vez que parti.
Era sempre a mesma despedida. Do teu “menino” deixando a
tua casa, teu lar… No retrovisor, te vias ao longe, desfigurada pela
dor. A saudade ia acelerada no asfalto das lembranças.

A senhora não sabe, mas o silêncio do carro na volta pra
casa me forçava a exercitar na memória e me preparar um dia
para tua perda. Até que veio aquele recente nove de fevereiro.
Tentei, mas não segurei o choro no microfone ao pedir orações
pela tua saúde.
Na estrada, na madrugada, até o Trauma de Campina
Grande, rogava a Deus por uma nova oportunidade. Uma oportunidade
para todos nós que te amávamos. Eu sabia que a senhora
sobreviveria e me enchi de esperança ao final da cirurgia. A
espera, a angústia e a fé andaram juntas durante todo esse tempo.
Foram tantos amigos meus que te fizeram teus também.

A senhora lutou. Muito. Bem mais que as forças que lhe restavam
dos teus 73 anos. E venceu etapas, amparada na tua crença
em Jesus Cristo. Até voltar a apertar minha mão, movimentar a
cabeça. Cada esforço era pra me dizer que estavas ainda firme. E
vencendo.

Força que contrariou todos os prognósticos até que voltastes
a me olhar com doce carinho fraternal. Tanta força que balbuciastes,
me abençoastes e pedistes para tirar-te daquela cama e levá-la
de volta pra tua casa só fazendo sinal e apontando para a porta da
enfermaria.

Eu preparei uma casinha improvisada para o tempo do
teu tratamento. Bem do seu jeitinho. Um pezinho de caju e uma
planta de romã no jardim para enfeitar teu dia. Eu sonhava com
a senhora de cadeira de rodas logo cedo sentindo o orvalho da
manhã bem pertinho de mim.

Dois dias após a volta tão esperada pros meus braços,
regressastes em plena Sexta-Feira da Paixão para o calvário da
UTI. Mãe, cada vez que informava dia e hora era minha forma
de te dizer que estavas vencendo dia após dia. Era pra te passar
alguma segurança no meio de tantos aparelhos e gente estranha.
Como doía soltar tua mão, segurando forte a minha sem saber se
haveria outra vez.

Nem sei ao certo se a senhora, nesses quase três meses
de hospital, entendeu que fora vítima de um fulminante AVC
hemorrágico. Eu até tentei te explicar. Mas prestavas mais atenção
nos meus olhos e me fitava sempre como a última vez.

Ontem, tudo nessa minha vida doida e corrida conspirou
para eu faltar na visita, mas algo me chamava. Fui fora do horário.
Não sentistes, eu sei, mas apertei tua mãozinha já inchada
e maltratada. Virastes teu olho entreaberto na minha direção e
entrastes bem no profundo da minha alma.

Com os dedos que um dia brincastes te ajudei a abrir o
outro olhinho. Nos encontramos mais uma e pela última vez. Era
a despedida. No desfalecer de tuas forças, nada podias falar. Se
pudesse, tenho certeza que não seria para reclamar dor, porque
se doastes inteira a causa dos teus. Nunca murmurastes e nem
pedistes nada de volta.

Tenho pia convicção que me escutastes quando bem perto
soprei no teu ouvido: “Mãe, eu te amo muito. Obrigado por tudo
que a senhora fez por mim. Eu nunca vou esquecer”. Também
sei, minha mãe, que no fundo da tua alma e mesmo com o olhar
turvo respondestes em silêncio da mesma forma que sempre
fazias, por telefone ou me abraçando, com todo afeto e marcante
simplicidade:

– Você mora no meu coração!

Nessa morada, continuarei a viver por aqui. Siga em paz.
Abraço em Hernon, meu irmão, teu outro filho tão querido e por
quem tanto chorastes e sofrestes após a prematura partida.
Ah, antes que eu esqueça: a senhora também nunca me chamou
de neto. E nós dois sabemos muito bem por quê. Não é mãe?

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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