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RIO DE JANEIRO

Cientistas reconstituem rosto que viveu há 2 mil anos

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publicado em 22/03/2018 às 18h56
atualizado em 22/03/2018 às 16h01
O rosto de ‘Ernesto’, reconstruído a partir de crânio de cerca de 2 mil anos de idade encontrado em sítio arqueológico na Zona Oeste do Rio - Divulgalção/Museu Nacional/UFRJ

Pesquisadores brasileiros apresentaram na tarde desta quinta-feira a reconstituição digital do rosto de um original “carioca da gema”. O indivíduo, um homem com idade estimada em 38 anos e entre 1,4 e 1,5 metro de altura, viveu na região do que é hoje o Rio de Janeiro há cerca de 2 mil anos. Apelidado “Ernesto” – homenagem ao odontólogo Ernesto de Salles Cunha (1907-1977), um dos pioneiros nos estudos de paleopatologia de povos antigos no Brasil -, ele teve seus restos desencavados nos anos 1980 em expedições lideradas por Lina Kneip, arqueóloga do Museu Nacional também já falecida, no Sambaqui do Zé Espinho, em Guaratiba, Zona Oeste da cidade.

Sambaquis são sítios arqueológicos formados por montes de conchas e outros materiais construídos intencionalmente por populações que habitaram o litoral brasileiro entre 8 mil e mil anos atrás e hoje vistos pelos especialistas principalmente como espaços funerários. O Zé Espinho tem aproximadamente 4 metros de altura, mas alguns achados no litoral de Santa Catarina atingem cerca de 30 metros.

– Quando o Sambaqui do Zé Espinho foi escavado nos anos 1980, foram encontrados 22 esqueletos humanos no total – relembra Murilo Quintans Bastos, bioarqueólogo do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da UFRJ, e um dos responsáveis pelo projeto de reconstrução da face de “Ernesto”. – Escolhemos então um dos mais bem preservados para representar como eram os antigos habitantes do Rio. Queríamos dar um rosto para esses povos para levar as pessoas a pensarem na importância da preservação de sítios arqueológicos como estes. São as únicas fontes de informações que temos sobre estas populações, já que elas sumiram antes de os portugueses chegarem aqui e não existem registros escritos ou arquitetônicos delas além dos próprios sambaquis. Uma caveira não costuma ser tão simpática para as pessoas, mas um rosto já gera empatia.

Mas o trabalho em torno de “Ernesto” não se resumiu à reconstrução de seu rosto. Em paralelo, os pesquisadores do Museu Nacional também realizaram um extenso estudo da chamada osteobiografia de seu esqueleto, também apresentado na tarde desta quinta.

– Como temos um esqueleto praticamente completo, também pudemos levantar dados sobre possíveis doenças que afetavam o indivíduo, sua atividade física e outras informações sobre seu modo de vida que deixaram pistas marcadas em seus ossos – conta Bastos.

Assim, além da idade e estatura, os cientistas puderam observar, por exemplo, que seus dentes não tinham cáries mas apresentavam um grande desgaste, numa indicação de que tinha uma dieta rica em proteínas, mas pobre em carboidratos. Seu esqueleto também não tinha marcas de violência, e indícios de artrose na coluna vertebral e membros superiores indicam uma atividade física mais intensa com os braços e a parte superior do corpo, talvez por frequentemente remar por ter vivido em uma região de mangues.

– Os povos construtores de sambaquis eram formados por grupos de caçadores-coletores e, em geral, seus restos não têm muitas evidências de violência, o que sugere uma baixa frequência de conflitos, bem diferente do que a gente imaginaria – diz Bastos, reforçando não se poder classificar “Ernesto” como um carioca de fato pelo termo ser de origem tupinambá, nação indígena que ocupou o território do que é hoje o Rio depois do desaparecimento destes povos mais antigos da região. – Agora estamos tentando estudar se e como eles mantinham contatos intergrupos, com alguns estudos mostrando casamentos entre os grupos, mas esses trabalhos ainda são muito incipientes.

Um dos principais responsáveis pela reconstrução da face de “Ernesto”, o especialista em odontologia legal Paulo Miamoto, professor da Faculdade São Leopoldo Mandic, com sede em Campinas e unidades espalhadas pelo país, conta que o primeiro grande desafio do processo foi justamente trabalhar a distância. Diante disso, ele usou mais de 80 fotos do crânio tiradas de diversos ângulos pelos pesquisadores do Museu Nacional para montar um modelo digital em três dimensões do mesmo, numa técnica chamada fotogrametria. Daí, foi aplicar as técnicas forenses que já usa em trabalhos de perícia para identificação de vítimas de crimes no modelo, o que representou outro desafio.

– Lido bastante com casos de indivíduos modernos, mas tenho pouca experiência com indivíduos num contexto arqueológico – admite. – Assim, conversei com os pesquisadores do Museu nacional para saber como era seu modo de vida e como isso poderia influenciar na sua aparência, como a exposição a intempéries e à radiação solar. Não podia ser uma reconstrução artificial, ela tinha que ser cientificamente embasada.

E foi com isso e uma análise anatômica bem detalhada que revelou, por exemplo, pistas no próprio crânio de onde os músculos se prendiam aos ossos, que Miamoto chegou ao rosto de “Ernesto”. Segundo ele, de início achou que teria a uma imagem muito semelhante aos índios de hoje, mas logo procurou “se policiar” para não direcionar o trabalho, deixando a cargo dos critérios anatômicos guiar a reconstrução.

– Não tínhamos uma pré concepção de como ele se pareceria – destaca. – Fomos levados naturalmente aos resultados ao longo do processo com base nas informações da anatomia do indivíduo. O rosto foi aparecendo e foi empolgante ver se materializar o que antropólogos e arqueólogos tanto falam em seus artigos, contar a História com um componente visual que coloca a população em geral em contato com um período histórico que não é comumente abordado. Temos uma História de muitos séculos antes de Cabral que não vemos sendo transmitida para a população hoje, e este indivíduo é parte desta História do Brasil.

O GLOBO

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