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Adotar crianças devolvidas exige reconstrução de laços

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publicado em 25/05/2017 às 13h53
atualizado em 25/05/2017 às 10h54

“É o tempo inteiro de reconstrução”. É assim que a psicóloga Lúcia Soares, 52 anos, mãe adotiva do casal de gêmeos Alan e Alana, 15 anos, se refere ao processo dos filhos de compreenderem a própria história e se reinventarem a partir dela. Eles foram levados para um abrigo ainda bebês após sofrerem maus-tratos. Lá ficaram até os 3 anos, quando foram adotados. Mas esse ainda não foi um recomeço para as crianças. Após dois anos com a nova família, eles foram devolvidos para adoção. Embora não seja uma situação comum, a devolução de crianças adotadas traz novas marcas de abandono a uma trajetória já impactada pela perda de vínculos afetivos fundamentais. Nesta quinta-feira (25), é lembrado o Dia Nacional da Adoção.

Quando a devolução ocorre, o processo de encontrar uma nova família substituta é novamente iniciada a partir de destituição da família anterior. De 2008 a 2015, foram registrados 130 casos de crianças e adolescentes que saíram do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e retornaram.

De acordo com a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), não é possível afirmar que todas voltaram ao cadastro por desistência ou devolução das famílias, pois há também casos em que o adotante morreu ou em que o próprio juiz entendeu que o pretendente não teria condições – financeiras, físicas ou psicológicas – para levar à frente a adoção. A criança deixa de constar no cadastro no momento em que ela sai do abrigo e é acolhida pela família como uma etapa de adaptação, ainda com a guarda provisória.

O juiz assessor da Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, Iberê Castro Dias, destaca que o número de devoluções não é significativo diante das adoções, mas que o tema não deve ser negligenciado. “Na vastíssima maioria dos casos, as adoções são extremamente bem-sucedidas, inclusive as tardias. A gente tem caso, por exemplo, de um senhor em Guarulhos que adotou seis adolescentes”, apontou. Em 2016, foram adotadas 1.226 crianças e adolescentes em todo o país por meio do CNA. A preparação dos pretendentes, para ele, é a forma de evitar que esses casos ocorram e tragam mais transtornos ao desenvolvimento das crianças e adolescentes.

Lúcia e o marido João Baptista Bonfim adotaram os gêmeos quando eles já tinham 7 anos. “Após o primeiro encontro, nós já conversamos que tínhamos nos apaixonado por eles”, relembra a psicóloga. Eles contaram com o apoio de um grupo de adoção em Recife, onde moram, para se prepararem para a tarefa. “Você se vê em outras histórias, outras famílias. Você vê que a sua angústia é semelhante à do outro”, disse sobre a importância desse espaço. De acordo com a Associação Nacional de Grupos Apoio à Adoção (Angaad), são pelo menos 150 grupos como esse no país, em todos os estados, que reúnem voluntários que já precisaram desse suporte.

“O grande papel do grupo de apoio à adoção hoje é trabalhar com o Judiciário no preparo desses pretendentes e ainda, mais do que isso, também na pós-adoção. É depois que a criança vai para a família que as coisas começam a acontecer. As dúvidas vêm e as dificuldades no dia a dia aparecem”, explica Suzana Schettini, presidenta da Angaad. Lúcia relata que o grupo tem sido um apoio importante nos desafios da adolescência dos filhos. Na avaliação de Suzana, é comum que os conflitos ocorram em maior proporção nos casos de adoção tardia e por isso situações como essas precisam ser acompanhadas para que se evitem devoluções.

Raiva foi o sentimento que Lúcia disse sentir por um tempo após conhecer a família adotante que tinha abandonado os seus filhos. “Devolver crianças, por mais que eu entenda um pouco do universo humano, é muito chocante. São marcas que vão ficar para o resto da vida”, disse a psicóloga. Hoje, ela conta que já conseguiu trabalhar esse sentimento e fala com sobre o significado da adoção. “Adoção pra mim é a construção de um afeto, de uma relação de troca. A gente está sempre aprendendo. Envolve desafios também, claro, porque ser pai e mãe é desafiante, não é só porque é pai ou mãe adotivo.”

Preparação

É o que avalia também a psicanalista Maria Luiza Girardi, autora do livro Devolução de Crianças Adotadas – Um Estudo psicanalítico. Ela explica que não há um levantamento estatístico sobre os casos de devolução, mas que é possível identificar situações mais delicadas, como adoção tardia, inter-racial, de grupos de irmãos e de crianças com necessidades especiais. “É necessária uma preparação rigorosa desses adultos que vão adotar essas crianças, assim como das crianças. Da mesma forma que o adulto idealiza muitas vezes a criança que vai adotar, a criança também idealiza a família onde ela vai ser inserida, ou que ela deseja”, aponta.

Para a psicanalista, a expectativa extremada no caso da adoção explicam parte dos conflitos que surgem na relação familiar. “Nenhuma criança pode satisfazer exigências tão grandes, quando são tão elevadas. Então o nível conflitivo está sempre ali rondando”, explica. A motivação baseada no altruísmo, e não no desejo de exercer a paternidade ou maternidade, também pode ser um fator de risco para as situações de devolução, como explica Maria Luiza. “A ideia de fazer um bem a uma criança não sustenta, a longo prazo, um projeto de filiação verdadeira.”

Reparação

A promotora Mirela Monteiro, do Ministério Público de São Paulo, explica que as crianças e adolescentes que passam por esse processo podem receber reparações. “A expectativa frustrada traz consequências psicológicas, às vezes, até maiores do que ela tinha antes. Nesse caso, tem direito sim a danos morais e até pagamentos por danos de despesas médicas e psicoterapia que a criança venha a precisar”, explicou. Foi o que ocorreu em um dos casos em que Mirela precisou atuar. Não foi necessário ação judicial, pois os pais se comprometeram a pagar terapia para a criança que tinha 8 anos. O caso ocorreu ainda quando a família tinha a guarda provisória, mas já tinha se passado oito meses de convivência.

Mirela reforça que é preciso avaliar caso a caso ao tomar a decisão pela reparação. “Sempre tem que analisar a razão da devolução e o tempo que isso demorou para acontecer”, disse. Os casos que não têm justificativas consistentes são as que, normalmente, requerem reparação. “Nesse caso, entendo que, de fato, há abuso de direito por parte dos pretendentes, dos adotantes, de que o estágio sempre é analisado a favor da criança”, explicou. Nos casos em que a devolução ocorre após concluído o processo de adoção, é possível a solicitação de pagamento de pensão alimentícia até que uma nova família substituta seja encontrada a criança ou adolescente.

Agência Brasil

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